Por Rafael Medeiros
O termo “doutor”, vocábulo da língua portuguesa amplamente utilizado, seja em ambientes acadêmicos, seja em situações cotidianas que transpareçam respeito ou hierarquia social, tem sua origem no latim, antiga língua indo-europeia que deu origem à língua portuguesa e era falada no Lácio, região que circundava a cidade de Roma. Etimologicamente a expressão “doutor” tem suas raízes na palavra latina “doctor”, cujo significado remete ao ofício de professor ou mestre, pertencendo, portanto, a família do verbo “docere”, cuja tradução é ensinar. Assim, tomando o pressuposto etimológico, um doutor é aquele que domina certo conhecimento ou arte do saber e o ensina, atuando em uma área específica com maestria, transmitindo o conhecimento e/ou compartilhando o saber para as gerações posteriores.
Nesse contexto, são doutores aqueles que reconhecidamente dominam a arte de um saber muito além da titulação acadêmica que porventura possuam. Em Várzea, doutor se refere aquelas pessoas que, de uma forma ou de outra, se destacaram nos seus meios e/ou contribuíram dentro de sua esfera de ação para o desenvolvimento de sua comunidade e o progresso de sua gente.
Os "doutores da terra" no município de Várzea são, dessa forma, personagens profundamente importantes em uma comunidade de pessoas simples e humildes, cujas mãos estão acostumadas ao trato com a terra, mas cujas mentes abrigam uma inteligência magistral, característica, aliás, bastante peculiar entre a população do município. São indivíduos que, mesmo sem diplomas acadêmicos, de alguma forma deixaram uma marca importante em sua região.
Esses doutores da terra sempre desempenharam e continuam a desempenhar um papel vital no fortalecimento da comunidade varzeense. São os conselheiros naturais, os mediadores de disputas e os pilares de apoio para aqueles que necessitam de orientação na vida rural. Suas histórias e ensinamentos são passados de geração em geração, preservando a riqueza da tradição local.
A cidade deve muito de seu desenvolvimento a esses "doutores da terra". São eles que transformam uma terra comum em um solo fértil, um simples campo em um celeiro de oportunidades. Seu legado é um testemunho vivo de que a verdadeira sabedoria pode ser encontrada nas lições da natureza e nas mentes daqueles que a respeitam e cuidam com paixão e inteligência, além, é claro, da valorização do conhecimento e da educação como pilares fundamentais para a sustentação do equilíbrio entre o saber teórico e a inteligência prática.
A mão da medicina no campo
Estamos em 2006. Passa das quatro da tarde e, para quem habita o sítio Trapiá, já está chegando a hora de arrebanhar os animais para encerrar a luta de mais um dia. Pouco a pouco o sol já vai esfriando e, em desmaio de cor, vai pincelando o poente do amarelo mostarda que comumente anuncia os princípios de fim de tarde no sertão. O espetáculo da natureza é gratuito e belo, convidativo ao olhar de quem por ali se encontra, caso de Seu Ernani de Antônio Emídio. Mas ele infelizmente não pode se concentrar no amarelo poético do céu poente, pois lhe chama mais a atenção o amarelo claro do pelo de sua vaquinha Mansinha que contrasta com o verde acinzentado do velho pereiro debaixo do qual se encontra caída, esmorecida e morrinhenta desde o começo da tarde. Acometida de infecção uterina após um parto difícil e doloroso no qual perdeu seu bezerrinho, Mansinha parece entregue ao próprio sofrimento, arquejando penosamente, deitada na sombra da própria solidão e totalmente sem forças para levantar.
Seu Ernani sente-se impotente, já tentou de tudo, já quis levantá-la, lhe dar alimento, mas nada resolve e, não sabendo mais como ajudar a sua boa vaquinha leiteira, resta assistir ao seu fim agonizante e lento. Porém, uma fagulha de esperança lhe ressurge ao lembrar que por aquelas horas, a cerca de 10 quilômetros dali, no sítio Serrote Branco, Seu Chico Babado deve estar em casa. Seu Chico Babado, como é conhecido o senhor Francisco Assis de Medeiros, não é veterinário, não de profissão, mas carrega em si a vocação quase inata de salvar as vidas e ajudar os rebanhos de sua terra. Seu Ernani então, chama o filho Jerry e pede que ele pegue a moto e vá o mais rápido que pode ao sítio Serrote Branco em busca do auxílio desejado.
Jerry assim o faz. Partida dada, primeira acionada e logo a moto desaparece na estrada de barro para em menos de 15 minutos, alcançar e transpassar a porteira de ferro da casa de Seu Chico Babado. Lá está o homem, um senhor que habita a casa de seus 60 anos, fala mansa e português eloquente, olhos azuis e cabelos grisalhos que anunciam sua experiência de vida vivida. Está encerrando sua própria luta, arrebanhando seus próprios animais e se preparando para descansar, quem sabe dar um cochilo de rede na casa onde hoje vive sozinho. Recebe Jerry cordial e educadamente, ouve a situação e não hesita: para logo o que está fazendo, entra em casa, lança mão de alguns frascos e seringas de sua improvisada farmácia veterinária e monta na garupa da moto com seu jeito singular: uma mão segurando a caixa de isopor em seu colo com os instrumentos necessários enquanto a outra dá o equilíbrio na moto pousada na própria cintura com o cotovelo dobrado em um ângulo de 90 graus. Ao chegar ao sítio Trapiá, Seu Chico já sabe de cor o que fazer: aplica o medicamento de partomicina em Mansinha e explica a Seu Ernani do que se trata. Diz que no dia seguinte o mesmo procedimento deverá ser realizado enquanto a vaca deve seguir em observação.
Em menos de duas horas, antes das seis da noite, Mansinha, quase que milagrosamente se levanta, ânimo renovado e semblante muito mais saudável. No dia seguinte, Seu Chico faz nova visita, repete a aplicação e a vaca restitui as forças. Seu Ernani não cabe em si de agradecimento. Mansinha viverá pelo menos mais 5 ou 6 anos na propriedade gozando de plena saúde. Seu Chico Babado fica evidentemente feliz pelo êxito do seu trabalho, no entanto, como já é um costume que o acompanha, não cobra 1 centavo pelo serviço realizado.
12 anos antes, em 1994, no sítio Caiçaras, Figueiredo de Chicó Soares desesperava-se ante uma situação incomum: nada menos do que 14 reses do rebanho que cuidava, sendo algumas cabeças de sua propriedade e a maioria de propriedade de seu pai, adoeciam ao mesmo tempo, vitimadas pela terrível febre aftosa que assolava os rebanhos bovinos naquele ano pelo Brasil inteiro, quando o país registrou mais de 2000 focos muito em decorrência do plano econômico do governo de 1990, quando o pico inflacionário fez com que o bovino comercializado em leilões virasse moeda e a partir disso, a aglomeração de animais de diferentes procedências favorecesse o contágio da doença.
O próprio Figueiredo meio que disgnosticou o quadro quando começou a perceber os sintomas cada vez mais evidentes no seu gado: as reses esmorecidas, o aparecimento de ulcerações altamente dolorosas nas bocas dos animais que os impedia de se alimentarem. A experiência de observação de criador, somada às informações jornalísticas recebidas pelo rádio acerca do surto de febre aftosa no país não deixavam dúvidas de que algo urgente precisava ser feito ou ele perderia grande parte de seu rebanho.
Foi esse quadro que o fez logo mandar chamar Chico Babado, o qual, como amigo pessoal de muitos anos, não pensou duas vezes antes de lançar mão de seus equipamentos para montar em sua bicicletinha Monark e rumar ao sítio Caiçaras. Naquele tempo, depois de viúvo e pai solo (sua esposa e mãe de sua numerosa prole de 9 filhos, Dona Margarida Brito de Medeiros, havia falecido em 1984) ele vivia ainda com dois dos filhos mais novos, Jota e Raniele, pois os outros já haviam se casado ou tomado outros rumos pela estrada da vida. Foi assim que naquela manhã ele deixou Jota e Raniele no comando da casa e pedalou em direção à nova missão que lhe era dada, avistando cada vez mais perto a Serra da Cozinha, a qual parecia abraçar amistosamente as cercanias do sítio Caiçaras.
E era assim que ele comumente fazia em seu ofício quase diário de veterinário não formado na universidade, mas vocacionado pela esperança e conduzido pelo empirismo do trabalho. Fosse desafiando a força das chuvas ou a escuridão da madrugada, fosse transformando as veredinhas brancas em atalhos que o fizessem chegar mais rápido, Seu Chico jamais se dobrou às intempéries para correr em socorro dos animais que habitavam os currais de sua redondeza.
E naquela oportunidade não foi diferente, apesar da evidente dificuldade da empreitada. Ao chegar na propriedade de Figueiredo ele logo percebeu que a situação era demasiadamente séria e exigiria o trabalho de muitos dias. A febre aftosa é traiçoeira e letal, além disso, o fator altamente contagioso contribui para devastar mais rapidamente os rebanhos. Assim, ele logo separou as reses doentes das sãs, lançando em seguida mão dos antibióticos e anti-inflamatórios que trouxera. Auxiliado por Figueiredo, iniciou os trabalhos com toda dedicação e fé em Deus que as perdas, se houvessem, fossem mínimas.
Foram dias e mais dias de luta, no mesmo ir e vir de sua casa, a bicicletinha vencendo os quilômetros do caminho e a melhora dos animais acontecendo a conta-gotas. Ao fim de 15 dias de trabalho árduo, as 14 reses, sem exceção, estavam salvas, e Seu Chico estava feliz e agradecido pela bem-aventurança do serviço. E quanto a Figueiredo? Bem, basta dizer que o homem estava bem endividado; não de dinheiro, pois já foi dito aqui que Chico Babado não cobrava nenhuma remuneração pelo seu trabalho, apenas pelos materiais e medicamentos utilizados. A dívida de Figueiredo era muito maior: era uma dívida de gratidão eterna, tão marcante que ainda o faz brilhar os olhos mais de 30 anos depois quando reconta essa história. Ele gosta de remeter a esse fato como algo quase heroico, um salvamento inacreditável realizado pelas mãos de um homem simples, igual a ele mesmo, sem as letras formais da academia, mas cujas obstinação e sabedoria venceram o fantasma daquela peste que espreitava silenciosa e perigosamente as porteiras dos currais Brasil a fora.
A história de Chico Babado na medicina veterinária informal, no entanto, vai muito além dos esporádicos casos de Ernani e Figueiredo e remete aos anos setenta, quando ele trabalhou cuidando dos rebanhos de fazendeiros do município de Várzea, a exemplo de Tião Germano e Chiquinho do Mimoso. Mais precisamente em 1978 o seu talento natural de cuidar dos animais, sobretudo dos rebanhos bovinos foi descoberto por um agropecuarista muito importante e conhecido no município: Chiquinho do Juremal, cuja percepção visionária viu em Chico Babado a facilidade com ele lidava com as atividades de manejo com o gado, como vacinar as reses, auxiliar nos partos das vacas etc. E foi justamente Chiquinho quem o incentivou a fazer um curso de vacinadores na cidade vizinha de Santa Luzia. Chiquinho talvez nem tenha percebido, mas sua visão aguçada iniciava uma jornada de ricas contribuições futuras para a agropecuária varzeense; a força de seu incentivo foi tão importante naquele momento, que pode ser comparada ao labor de um joalheiro que lapida um diamante bruto e Chico Babado, autodidata e amante do conhecimento que era, aceitou prontamente o desafio. Esse curso de vacinação, ministrado no Vale do Sabugi pelos médicos veterinários Cícero Diniz e José Carlos, fazia parte do "Projeto Sertanejo" programa de ações do governo federal criado em 1976 com coparticipação regional e estadual que visava desenvolver a região do semiárido nordestino. Chico Babado realizou o curso com afinco e determinação, nutrindo tanto respeito e tanta admiração pelos mestres que o orientaram que algum tempo depois batizaria um de seus filhos com o nome de José Carlos, em homenagem ao veterinário que ministrou o curso de vacinador ao lado do santaluziense Cícero Diniz. José Carlos, o filho era justamente aquele que mais tarde seria conhecido pelo apelido de Jota e nos anos 90 ficaria com a irmã Raniele em companhia do pai.
Autodidata, Chico Babado cursou apenas o antigo "primário", como era chamada a primeira fase do ensino fundamental nos idos das décadas de 50 a 80, sendo a aprovação no Exame de Admissão para cursar o ginasial seu único diploma. Era, no entanto, amante da leitura, entusiasta das ciências naturais, políticas e econômicas. Seu conhecimento vinha do esforço diário para buscar informações nas fontes que encontrasse, fosse nos recortes de jornais e revistas que colecionava, nas bulas dos fármacos que receitava ou nas informações veiculadas pelas ondas de rádio da Voz do Brasil, que ele escutava religiosamente todas as noites quando o relógio anunciava a exatidão das 19 horas e a vinhetinha característica do programa exigia o silêncio de todos. Seu aparelho de quatro elementos, como eram chamados os rádios alimentados com quatro pilhas, era, aliás, quase um artigo de luxo em sua casa humilde, pois em uma época na qual a televisão, tampouco a eletricidade haviam chegado, o rádio desfilava como o principal veículo de notícias nos interiores do país.
No livro Vidas Secas, Graciliano Ramos construiu um emblemático personagem chamado Seu Tomás da Bolandeira, que, vivendo no sertão, se caracterizava por ser um homem culto apesar de humilde, e, pela inteligência, a boa expressão oral bem como a paixão pela leitura, detinha a admiração de todos, inclusive de Fabiano, personagem principal da obra. Pode-se dizer que Chico Babado era uma espécie de Seu Tomás da Bolandeira à varzeense, pois o mundo da palavra escrita, a sede de conhecimento e a erudição na fala sempre foram paixões e/ou hábitos cultivados por ele, fato reforçado pelo hábito de dedicar duas horas por dia, geralmente após o horário de janta, para atualizar suas leituras e pesquisas, por mais que essas fossem alumiadas apenas pelo pálido brilho das lamparinas a querosene.
O legado de Chico Babado para a história do município de Várzea é extenso. Quem o conheceu, certamente vai lembrar dele como um homem de fala mansa e eloquente, profundamente dedicado ao trabalho e ao desenvolvimento agropecuário de sua terra. Ele foi, no município de Várzea, uma espécie de plano de saúde veterinário para o pequeno criador, pois nunca se furtou de ajudar ninguém, fosse organizando as campanhas de vacinação dos rebanhos, fosse cuidando dos animais doentes. Sua bicicleta provavelmente passou pelas estradas de todas as comunidades rurais do município e o seu modo abnegado de cuidar da vida animal muito certamente se fez uma prática presente além de todas as porteiras varzeenses.
Parabéns pelo belíssimo texto, Rafael. Quem conheceu o Sr. Chico Babado sente a emoção de cada palavra lida.
ResponderExcluirParabéns Rafael. Muito obrigado por reavivar tamanha lembranças. Muito emocionada lendo está história do meu saudoso Pai Chico Babado. Muito orgulho!
ResponderExcluirAdoro ler esses textos descomunais desse grande escritor. Quem conhece os personagens aos quais o texto se refere entra em um momento nostálgico emocionante. Parabéns!
ResponderExcluirParabéns Rafael! Seu texto é uma lembrança quase traz ao presente este passado! Resgata memórias vivas naqueles, como eu, que vivenciaram esse período e conhecem essa história e outros personagens citados! Percebo um autor de sucesso!
ResponderExcluirObrigada Rafael! Revivi cada linha desse texto tão verdadeiro, forte e emocionante!Pai amava servir!
ResponderExcluirFico muito grato Rafael em ler esse fato que dor testemunho vivo de Sr Chico Babado homem que você descreveu parte da sua história,que o nome desse homem fique gravado nas estrelas do céu e estradas empoeiradas do nosso sertão parabéns por sua obra
ResponderExcluirTive o prazer de conhecer e conviver com esse ser iluminado,seu Chico Babado,quem o conheceu sabe do que estou falando,seu Chico merece todas as homenagens póstumas possíveis e também um memorial na cidade de Várzea para que seu nome jamais seja esquecido da nossa história. Muito obrigado professor Rafael por esse lindo e maravilhoso relato.
ResponderExcluirQuem conheceu Chico Babado e precisou de seus serviços de urgência como eu vi meu pai precisar várias vezes, não tem como não se emocionar lendo esse texto. Parabéns, Rafael. Belíssimo trabalho de resgate.
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