Por Epitácio Germano e Rafael Medeiros
Olhar atencioso ao horizonte protegido pelo para-brisa e sobre a estrada apenas o som de pneus quebrando os cascalhos em direção ao próximo destino. Viajar ao passado é recordar a história de muitos, especialmente dos motoristas de época, como Edmundo, Valdir Ramalho etc, profissionais que atuaram como condutores da vida manobrando veículos em um tempo em que se exigia maior atividade manual para o trabalho. Foram esses que testemunharam a própria história de desenvolvimento da indústria automotiva do país na transição dos dois últimos séculos, e inauguraram ainda, os novos tempos na ocupação de espaços em empresas, repartições públicas e como profissionais exercendo também compromissos particulares, sendo sempre referenciados pela experiência de estrada.
O chofer social por vocação
Imaginar a existência de um cenário rodoviário com trânsito intenso, muitos veículos e competitivo, como é comum nos grandes centros urbanos de hoje, porém no início dos anos de 1960, no interior do Nordeste, é algo distante do desenho geográfico que a própria região característica por suas veredas permitia aquela época. A geração deste período era testemunha sobrevivente do fim da Segunda Guerra Mundial, e pouco saberia que pouco depois também acompanharia um dos períodos mais sombrios da história brasileira, com a tomada do poder político através de golpe militar.
A influência de todos esses acontecimentos era tamanha, que o exercício brasileiro acabou se transformando em um modelo de ensino e formação para os jovens que buscavam alguma oportunidade. O desejo não era combater, mas ser combatente contra a própria dificuldade do período e ser contemplado com mão de obra qualificada. Foi neste ambiente de formação que muitos conseguiram o acesso ao conhecimento para o exercício profissional, e depois da dispensa, caminharam por outros caminhos e tentaram, como bom sertanejo, o espaço para escrita da própria história.
Chico de Simão, assim como muitos varzeenses foi soldado e serviu ao Exército Brasileiro, mas depois da dispensa, passou a ser um servidor da construção social em sua origem. Sua vocação como motorista era algo pragmático a própria paixão por veículos, e sua passagem na estância militar rendeu-lhe o mérito para atuar como condutor profissional.
O retorno da base militar de Mossoró, município localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte, garantiu na bagagem de Chico Simão a experiência de dirigir caminhões, e ao regressar ao seu sublime torrão, logo foi fichado como motorista da antiga Mina da Quixaba. A economia nesta época era garimpada pelo considerável valor da xelita, e sua missão era o transporte de dinamites, em uma viagem de mais de duzentos quilômetros entre Currais Novos e os antigos galpões da Quixaba. Neste período, o controle do tempo de viagem era assinado por Bastinho Soares, que marcada o horário de saída e chegada do caminhão para analisar se algo supostamente poderia ter acontecido, em caso de atraso.
Aero Willys: o clássico dos anos 60
Ainda no fim da década de 60, Chico de Simão realizou o sonho de comprar o seu primeiro veículo. Recém-casado, e com o apoio de seus pais, a venda do rebanho bovino criado no Sítio Trapiá lhe garantiu a aquisição, à época, do modelo Aero Willys, clássico veículo fabricado pela famosa Willys Overland.
Com o primeiro carro na garagem, o motorista de experiência militar e responsável pelo transporte de cargas dinamites, passa a realizar viagens domésticas e atender pedidos particulares.
De tratorista a chofer social: o motorista de muitas gerações
Após trabalhar por vários anos como funcionário na Mina da Quixaba, o desafio seguinte de Chico de Simão foi assumir a função de tratorista do Município. O veículo havia sido adquirido pela gestão do prefeito Mário Primo de Araújo, com a visão de alavancar o trabalho de assistência ao homem do campo. O intuito de gerar o desenvolvimento com alguém conhecedor da própria realidade, associado a necessidade de um motorista experiente, garantiu uma nova trajetória ao transportador das dinamites de xelita, agora como servidor público, missão exercida ao longo de mais de trinta anos, até conquistar sua aposentadoria em uma profissão escolhida pelo próprio ofício de vocação. Do preparo do solo no campo, sua missão como servidor ainda incluiu a condução do caminhão da coleta de resíduos, e tempos depois, a responsabilidade do transporte de estudantes na rede municipal de ensino.
O perfil de dedicação ao expediente público e competência ao cargo investido fez de Chico Simão um dos poucos condutores que conseguiu travessia em todas as gestões públicas da história política da cidade, assim como autonomia para condução aos primeiros veículos e máquinas registrados no município.
Além do Aero Willys, Chico de Simão foi proprietário de carros como Jeep e, por último, um modelo Pálio, fabricado pela italiana Fiat, de cor verde cintilante. Sua dedicação à estrada, assim como aconteceu a vida social e familiar, ficou marcada pela educação como tratava a todos. Olhar sereno, atencioso e sempre prudente a cada quilômetro. Um motorista que tinha braços firmes ao volante e que transportou, ao longo de décadas, mais que o conceito de contribuinte ao desenvolvimento de seu próprio lugar, os sonhos e a realização de muitos de chegar com segurança ao destino. Um chofer social por vocação, e mais que isso, digno da própria profissão é que inspirou outros condutores.
O amante dos tratores e aceleradores
Para quem conheceu nunca foi surpresa que Nego Basto era um amante inveterado do acelerador. Por isso, muitas das viagens com ele ao volante eram, digamos, mais recheadas de emoção. Nascido em Jardim do Seridó, no vizinho estado do Rio Grande do Norte, Basto radicou-se no município de Várzea desde sua juventude, onde fez amigos, jogou futebol nos times amadores da cidade, frequentou os forrós das comunidades rurais, casou e formou família.
Em 1977, juntamente com outros motoristas da região como Vamilton Vieira, Basto realizou o que não seria exagero chamarmos de a universidade que marcaria sua vida: o curso de tratorista promovido na cidade de Bananeiras, no brejo paraibano. Era a sua oportunidade de se profissionalizar, especializar-se no ramo que sempre demonstrou habilidade e prazer para realizar - a aragem de terras.
Requisitado por praticamente todos os produtores da região varzeense, Basto destacava-se pela disposição para o trabalho, pela coragem para enfrentar os desafios das terras mais difíceis de serem cortadas. Quem presenciou sempre contou que Basto chegava a se divertir quando pegava terras muito úmidas e o trator chegava a atolar, pois ele encarava isso como uma oportunidade para demonstrar suas habilidades de tratorista.
Como motorista da Prefeitura Municipal, começou a trabalhar no ano de 1993, depois de trabalhar com o médico Otoni Medeiros na campanha a prefeito em 1992, que o contratou por ele conhecer toda a região rural de Várzea, tornando-se, portanto, o motorista de confiança do chefe do executivo.
Com a saída de Otoni da prefeitura, nos governos seguintes ele continuou trabalhando a serviço do município e dirigia praticamente todos os veículos oficiais, o que incluía caçamba, caminhonete, F- 4000, ambulância, o famoso Elba vermelho adquirido pela prefeitura no início dos anos 90 etc, mas nunca escondeu de ninguém que sua paixão sobre rodas sempre foram os tratores.
Quanto a fama de pé embaixo que sempre teve como motorista, não se conhece ao certo quando foi construída, mas até onde se sabe é verídica, sobretudo quando dirigia os carros de passeio da prefeitura: se o passageiro falasse que estava apressado, o veículo automaticamente fazia o velocímetro vibrar rumo ao seu máximo.
Acasos, casos acidentes e incidentes
Na condução dos veículos, fossem de passeio ou de trabalho, Basto se deparou com muitas circunstâncias que só a estrada proporciona, como da vez em que, dirigindo pela região do brejo, deu carona na carroceria de sua caminhonete a um grupo estudantes desconhecidos que vibravam com suas manobras arrojadas e seu pé firme no acelerador.
De outra vez, quando trabalhava dirigindo a caminhonete C10 de Pedro Hermógenes, vinha da zona rural com uma carrada de capim daquelas caprichadas que lotam todo o espaço da carroceria. Com ele, o próprio Pedro Hermógenes e o pedreiro Ronaldo de Luiz de Romana dividiam a boleia, além de Inácio Pedro, conhecido na cidade como Inácio Bocão, que vinha de carona se ajeitando como dava na carroceria cheia de capim e ainda dividindo espaço com um tambor cheio de leite. Acontece que em uma das curvas da estrada, como era de costume, Basto não aliviou o pé no acelerador, e o tambor de leite rolou com força para fora do carro por mais que Inácio Pedro tentasse evitar. Ao ver o tambor tombar para fora da estrada com estardalhaço, Basto pisou firme no freio e parou a caminhonete morrendo de gargalhar com a situação: "Eita que desta vez o tambor caiu pra fora!". Mas logo teria ficado muito sério e preocupado quando Ronaldo redarguiu fazendo a seguinte observação: "Então, o problema é que Inácio caiu também..." Felizmente tudo não havia passado de um susto sem maiores complicações e a viagem pôde prosseguir em paz até a cidade.
Tacografando histórias com Sérgio de Lúcia de Quinca
Francisco Sérgio de Medeiros pode ser um nome comum e passar despercebido à primeira vista para algum habitante do município, mas este é apenas o nome completo de um dos motoristas mais longevos e conhecidos do serviço de transportes varzeense. Como não é na formalidade tampouco que nos documentos oficiais que são compostas as narrativas reais do povo, é por Sérgio de Lúcia de Quinca que todos vão conhecer e entender a referência de um profissional competente, cuja responsabilidade ao volante talvez seja seu maior legado. Provavelmente Sérgio já marcou todas as estradas do município com os rastros dos pneus dos tantos veículos que já dirigiu, bem como tem na própria na memória um hd imenso de histórias guardadas vivenciadas no seu trabalhoso ofício sobre quatro rodas.
Contratado pela prefeitura municipal na gestão de Babá Batista em 01 de junho de 1988, em uma época pré-Constituição na qual os concursos públicos não eram obrigatórios, Sérgio ainda muito jovem, já começava por aquele tempo a trilhar o caminho que talvez o tenha ficado mais conhecido no serviço dos transportes públicos: o transporte de estudantes. Era em uma caminhonete D20 azul escura que principiavam suas primeiras viagens, carregando os sonhos tanta gente que buscava conhecimento na capital do Sertão. Expostos às condições naturais do ambiente, era com uma lona improvisada que estudantes como Novo de Severino Canuto, Demazinho de Valdemar Marinho, Conceição de Biu Ramalho etc se protegiam da chuva; lona que Sérgio jamais esquecia de levar de carona na carroceria da D20.
Sérgio também era o motorista do ônibus que transportava as urnas eleitorais onde haviam sido depositados os sufrágios após o fim do dia das eleições. Em uma época eleitoral mais romântica, marcada pelos borrões nostálgicos das cédulas de papel, já era esperado que as apurações dos votos entrassem pela noite adentro, e essa contagem só poderia ser feita na sede do fórum eleitoral em Santa Luzia. Assim, Sérgio começava os trabalhos ainda pelo fim da tarde, passando de seção em seção e recolhendo as urnas nas quais estava literalmente impresso o destino político do município ou mesmo do estado (nesse caso em uma proporção um tanto menor). Apesar do peso dessa responsabilidade, essa era também uma oportunidade de fazer uma espécie de boca de urna pessoal, pois Sérgio percebia as aglomerações que se formavam em torno da casa do ex-prefeito João Balbina, point certo no qual as militâncias dos partidos se formavam para aguardar os resultados. Só de observar qual grupo estava mais numeroso e mais vibrante, Sérgio já podia mensurar qual lado sairia vencedor das urnas, as quais ele já conduzia no ônibus com todo o cuidado do mundo, e que, lacradas e silenciosas, iam de carona com ele selando o resultado decisivo do pleito.
Gaiatices ao volante
Viagens demoradas e cansativas marcaram a trajetória de Sérgio como motorista e chofer dos veículos municipais, mas nada que alterasse seu costumeiro senso de humor e sarcasmo típico dos Garcia varzeenses. Em uma oportunidade, fosse em finais dos anos 80 ou início dos anos 90, Sérgio recebeu do próprio prefeito Mario Pergentino a incumbência de levar algumas pessoas a um evento festivo na cidade de São Mamede. Na volta, pelo sereno sertanejo das altas horas da noite e a certa altura da estrada de barro que mais tarde viria a se tornar a PB 233, percebendo que só se encontravam acordados além dele, os pedais de freio, acelerador e embreagem (seus indeléveis companheiros de viagem) do carro de passeio que dirigia, Sérgio resolveu pregar uma peça nos seus passageiros festeiros e bem no pezinho do Alto de Maria Eliza desligou o carro e chamou jovens como Jailton Soares e Robson Ramalho, que ressonavam confortáveis e ressacados dos bons momentos vividos há pouco na festa da vizinha cidade do Vale.
Então, sim, o motorista os fez despertarem e saírem do carro para empurrá-lo na subida da ladeira com a desculpa de que o veículo apagara o fogo, prática aliás, que segundo diziam algumas más ou muito bem-informadas línguas, Valdir Ramalho também era adepto quando tinha de carregar algum adversário no antigo jipe da prefeitura...
Naquela noite, os jovens tiveram de suar para empurrar o carro na subida enquanto Sérgio sorria por dentro de divertimento pela pegadinha e provavelmente, é claro, de satisfação por indiretamente ajudá-los a se livrar da ressaca mediante o suor e esforço físico da empreitada. Ao final da ladeira, na descida, Sérgio fingiu que o motor do carro finalmente havia pegado no tranco e todos seguiram para Várzea satisfeitos pela certeza do bom dever cumprido.
Em outra oportunidade, já pelo recente ano de 2010, ao volante do ônibus amarelinho que transportava estudantes de Várzea para Patos, Sérgio discretamente observava pelo retrovisor do ônibus alguns estudantes fazendo troça quase que diária com o jovem Dudusão de Paulo Brito em virtude de seu tamanho corporal e suas adiposidades bem como de seus hábitos alimentares nada saudáveis: quando qualquer um deles expelia alguma flatulência mal cheirosa e isso naturalmente incomodava a todos dentro do ônibus, de forma automática alguém acusava Dudusão, que, por mais que negasse de pés juntos, seus argumentos não tinham validade em relação a inquisidora maioria de votos.
Fato é que, cansado das acusações jocosas e infundadas, Dudusão resolveu dar aos malandros uma demonstração do que seria o produto nada inalável de uma acusação contra ele daquela natureza e que fosse verdadeira. Então, naquela noite, cujo preâmbulo ele já havia preparado em casa forrando o estômago com raspas de queijo, ovos, vitamina de jaca e o que mais encontrasse, ao sair das aulas do curso de Administração que fazia na UEPB, ele comeu mais fastfood do que normalmente comia, pediu para caprichar na cebola e ensebou o lanche com bastante maionese. Estava pronta a sua bomba particular de gás sulfídrico.
Com todos devidamente abancados em suas cadeiras, o ônibus avançou na rodovia rumo Várzea, com Sérgio de pé macio no acelerador e olho atento apenas à estrada. Mas não deixou de perceber pelo retrovisor Dudusão se levantar da cadeira e soltar uma silenciosa venenosíssima que irradiou pelo ônibus inteiro, cujas janelas se encontravam fechadas para se proteger do frio noturno.
Foi um escarcéu de gente xingando-o, abanando o ar para tentar se livrar do mau cheiro que já ardia nas narinas, outros que tentavam desesperadamente abrir a janela para respirar um pouco de ar mais puro.
- Quando for de autoria minha, vocês vão saber só de sentir, mas eu farei questão de assumir! - ele disse enquanto se dirigia vitorioso e sorridente para sua cadeira.
Sérgio, que até então mantivera-se calado nesses incidentes, dessa vez não teve como não se pronunciar e, tapando o nariz como podia, fosse por sarcasmo ou por necessidade, disse simplesmente:
- Deus do céu... enchi a boca dágua!
Para além das gaiatices, tiradas de humor e cordialidade jovial para com os estudantes que conduzia, os atributos que sempre caracterizaram Sérgio ao volante foram outros: a habilidade como condutor, a pontualidade para com os horários que sempre teve de cumprir e a responsabilidade de uma missão que não é das mais fáceis: a de transportar vidas humanas em segurança fizesse chuva ou fizesse sol.
E se as palavras que definem os seus atributos como motorista rimam entre si, isso aí já é improviso do destino, um destino que o escolheu e o acolheu pelas estradas da vida desde sua juventude e que segue tacografando histórias e mais histórias sobre rodas há pelo menos trinta e cinco anos.
Nossa! Que homenagem a esses verdadeiros pioneiros que tanto ajudaram e serviram com toda despretenção nos primórdios do desenvolvimento de Nossa pequena cidade, eu, Mário, como filho do sr.Chico Simão,ainda bem pequeno,tive a graça de testemunhar uma verdadeira disponibilidade dele e de todos esses senhores que também conhecí, que iam além do limite humano para servir a todos. meus agradecimentos sinceros aos idealizadores dessa tão bela homenagem.(aos que já se foram para a eternidade,com certeza,já receberam sua recompensa no Céu,pois para Deus não existe heróis anônimos).
ResponderExcluirAh! além de cumprirem com esmero os seus deveres profissionais,serviram a Deus e ao próximo como consta no primeiro mandamento.
ResponderExcluirBela homenagem, ficamos felizes ,ficou lindo o texto enfim...Obrigado
ResponderExcluirMuito bom essas histórias,viajei no tempo ao relembrar de todos eles,foram e são ótimos profissionais.
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