O retorno da base militar de Mossoró, município localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte, garantiu na bagagem de Chico Simão a experiência de dirigir caminhões, e ao regressar ao seu sublime torrão, logo foi fichado como motorista da antiga Mina da Quixaba. A economia nesta época era garimpada pelo considerável valor da xelita, e sua missão era o transporte de dinamites, em uma viagem de mais de duzentos quilômetros entre Currais Novos e os antigos galpões da Quixaba. Neste período, o controle do tempo de viagem era assinado por Bastinho Soares, que marcada o horário de saída e chegada do caminhão para analisar se algo supostamente poderia ter acontecido, em caso de atraso.
terça-feira, 9 de maio de 2023
HISTÓRIAS DE BOLEIA: MOTORISTAS DE ÉPOCA
O retorno da base militar de Mossoró, município localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte, garantiu na bagagem de Chico Simão a experiência de dirigir caminhões, e ao regressar ao seu sublime torrão, logo foi fichado como motorista da antiga Mina da Quixaba. A economia nesta época era garimpada pelo considerável valor da xelita, e sua missão era o transporte de dinamites, em uma viagem de mais de duzentos quilômetros entre Currais Novos e os antigos galpões da Quixaba. Neste período, o controle do tempo de viagem era assinado por Bastinho Soares, que marcada o horário de saída e chegada do caminhão para analisar se algo supostamente poderia ter acontecido, em caso de atraso.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
QUANDO AS LAN HOUSES ERAM JANELAS PARA O MUNDO
Por Rafael Medeiros
Os
nascidos entre as décadas de 80 e 90
certamente vivenciaram momentos inesquecíveis que marcaram a história do mundo
recente, como por exemplo, a queda do muro de Berlim em 1989, a transição de
séculos/milênios entre 2000 e 2001, o ataque terrorista às torres gêmeas do World
Trade Center em Nova Iorque, a seleção brasileira de futebol se consagrar
campeã mundial em duas copas e, não menos importante, a passagem de bastão da
era analógica para a era digital, o que alterou significativamente os hábitos e
costumes de todos os inseridos nesse contexto.
Nesse período, a popularização da internet
representava o marco principal da evolução tecnológica mundial. A rede mundial de computadores, surgida inicialmente como uma estratégia militar dos Estados Unidos para descentralizar os dados estratégicos das bases
militares, havia tido uma grande explosão no Brasil exatamente no início dos anos 2000, porque o acesso a computadores
pessoais se difundira bastante em todo o país, por mais que o acesso à internet acontecesse ainda na conexão discada.
Uma cidade online
A Várzea do início dos anos 2000 era pacata,
pintada com as singelas cores de toda cidade do interior e ainda conservava os
saudáveis hábitos de socialização mais antigos, como, por exemplo, o de
frequentar a praça à boca da noite para, de boca em boca, colocar as conversas
e fofocas em dia. Era uma forma honesta e simples de cultivar os apegos e as relações
nas redes sociais da vida real.
Foi então que em junho de 2006, às vésperas do João
Pedro daquele ano, o microempresário Edinildo Araújo abriu o primeiro estabelecimento
da cidade com acesso à internet via rádio. O ambiente contava com algumas poucas máquinas
conectadas e uma internet lentinha, mas que já se configurava como um avanço
tecnológico gigante sobretudo para a juventude da época, que disputava os
horários e as cadeiras do local para se conectarem com o resto do mundo. Pouco tempo
depois o também microempresário Wandick Wagner decidiu transformar o seu espaço
de gameroom e videolocadora que tanto sucesso fizera no final dos anos 90 em um
espaço de lan house, abrindo, assim, uma saudável concorrência no serviço local
de conexão via web e dando mais opções de acesso a uma massa cada vez mais
aficionada pelas seduções do mundo digital.
O jornalista Rodolfo André na lan house de Edinho em registro de 2006 |
Era como se os bancos da praça disputassem com as
cadeiras das lan houses os espaços para abancar as conversas do dia, mesmo que
por muitas vezes as conversas face a face apenas complementassem as interações
virtuais do MSN, que era o principal serviço de mensagens instantâneas da
época. Assim, no ritmo agitado com que os bares de Brizola e Demar disputavamquem tocava o dvd de forró mais estourado do momento, as ruas que contornavam a
praça formigavam de jovens e adolescentes que iam e voltavam das lan houses
cheios de novidades para compartilharem.
Enquanto isso, pelos lados calmos da rua Izabel
Leopoldina, em um espaço modesto que se localizava em frente ao orelhão do
hospital municipal, um empresário santa-luziense de nome Petrônio, em negociação
com o varzeense Jozenaldo Medeiros, abria um novo empreendimento no ramo das
lan houses para atender melhor à demanda cada vez maior de varzeenses conectados
e expandir a concorrência local para, assim, fazer frente ao monopólio dos
amigos Edinho e Wandick no setor dos serviços digitais. Assim, aquele cantinho
da Izabel Leopoldina tornou-se rapidamente mais um point de encontro na cidade,
aquecido pelo bom humor e atendimento diferenciado dos jovens varzeenses Carmita
Marinho e Jubson Dantas, que foram contratados para administrar o espaço. Cerca
de um ou dois anos após a inauguração, o próprio Jozenaldo Medeiros comprou
definitivamente a empresa e passou a administrá-la junto com sua esposa Eliete Medeiros.
A lan house de Jozenaldo era muitas vezes chamada pelos seus frequentadores
mais assíduos em tom de brincadeira de lan house de Jubson ou lan
house de Carmitinha, tamanha era a identificação dos funcionários para com
o local.
O mundo
na palma da mão
Por um bom tempo, até meados da década de 2010,
eram as lan houses que conectavam o varzeense com o universo à sua volta,
estreitando as fronteiras do mundo, bem como se perfazendo como uma janela
importante de conhecimento, comunicação e entretenimento. As lan houses não faziam par
No entanto, com a economia aquecida e o poder de compra mais acessível a partir da segunda metade da década de 2000, a população varzeense passou cada vez mais a adquirir seus próprios computadores e contratar serviços individuais de rede, o que fez com que o fluxo de clientes nas lan houses passasse gradativamente a diminuir.
Além disso, com o advento dos smartphones, as lan
houses enfim perderam força em sua principal função: o acesso às redes sociais.
Afinal, os aplicativos presentes nos smarts já eram um computador particular na
palma da mão de cada um e com isso, não havia mais necessidade de frequentar os
agora antigos espaços de socialização virtual, a não ser para serviços
específicos como impressão ou coisas do gênero.
Porém, não há varzeense que não se recorde com certas doses de saudade de como era divertido pagar uma horinha em uma daquelas lan houses para fazer uma pesquisa na internet, ler as postagens e os recados que chegavam nas redes sociais, interagir em aplicativos de mensagens como MSN e skype ou mesmo encontrar os amigos que se deslocavam até elas para se comunicarem com o resto do mundo pela janela da rede mundial de computadores.
segunda-feira, 30 de maio de 2022
HISTÓRIAS DE CHARANGA
Batucada
aqui, batucada lá! Reco-reco para rasgar o silêncio da madrugada e um suave
toque de triângulo para afinar o som do coletivo que aguarda com ansiedade a
pancada seca do surdo para descer o primeiro gole de cachaça. Era assim que
acontecia a mistura de ritmos durante os anos 80. Tudo artesanal e sem nenhum
recurso eletrônico.
A
farra juvenil tinha tom clássico à época, mas concentrava nas vozes desafinadas
e roucas, a energia de uma geração de pessoas regida ao batuque reproduzido
pela formação de pequenas charangas – como a memorável charanga dos filhos de
Maria Eliza da Fazenda Umburana, município de Várzea. Além de tradição, o rito
era responsável por puxar a diversão da mocidade e, rompia socialmente naquele
período, muitos olhares do comportamento conservador, especialmente, quem
contrariamente não concordava com as algazarras musicais.
O
surgimento da charanga veio depois de uma viagem feita por Arílio, um dos
filhos de Maria Eliza, até a cidade de São Paulo no final da década de 70. Na
oportunidade de se debruçar sobre novas terras e viver outras experiências, um
sonho antigo de animar o ambiente tranquilo da Fazenda Umburana fez acontecer a
aquisição dos três primeiros instrumentos que formariam a charanga: reco-reco,
pandeiro e um tamborim. Com o retorno à Paraíba, logo surgiram outros itens;
triângulo e um surdo fabricado artesanalmente por Paulo de Joca Tião, que
detinha da arte da marcenaria, e logo cuidou de fabricar o instrumento para
depois selar o batuque, estendido por couro de bode.
A
primeira formação do grupo reuniu Genival de Laurindo, Nego Abraão, Mucambo,
Nego Gentil, Queixo de Pau, Caúa, Elusaí e os três irmãos Alírio, Emidão e
Tadeu. Com o som da charanga ecoando sobre o solo varzeense, naturalmente, os
instrumentos passaram a se revezar nas mãos de outros amigos como Sebastião de
Bela, Braz de Assis Pedra D’Água, Jorge de Toinha e tantos outros que
compartilharam felicidade reproduzindo melodia.
Os
batuques que todo esse roteiro de alegria protagonizado pela charanga fez com a
aquisição e fabricação dos primeiros instrumentos quebrou não somente o
silêncio da Fazenda Umburana, mas agitou o carnaval de 1981 com apresentações
pelas ruas e bares da cidade, contagiando a juventude daquele período. Outros
pontos com parada obrigatória para o aperitivo de cachaça ficavam concentrados
em Zé de Jovi, Anita de Neguim, João de Jacó e Geraldo Duz.
O
sucesso da charanga nesse período foi tanto que os momentos de algazarras
proporcionaram grandes encontros festivos além dos limites do território local,
com programações na cidade de Santa Luzia e no Distrito da Palma, localizado no
vizinho estado do Rio Grande do Norte.
Eleições
de 1982
Com
a música em ascensão e fazendo parte do calendário festivo da cidade, a
charanga também ganhou espaço nas eleições gerais de 82, sendo a responsável
pelo embalo da reprodução de ritmos na histórica campanha do então candidato do
MDB, Manoel Batista de Morais (Babá) eleito com 55,56% dos votos válidos.
Como
retribuição aos festivos comícios de campanha que foram embalados pela
charanga, ao assumir a Prefeitura, Manoel Batista de Morais, que também era
músico e mantinha grande admiração pelo meio musical, atendeu ao único pedido
feito pelos integrantes da charanga e fundou a Banda Filarmônica Abel Coelho da
Silva.
Formação da filarmônica Abel Coelho nos anos 80 |
A
nomeação de Abel Coelho da Silva a formação da Filarmônica Municipal foi uma
homenagem à família da esposa dele, Severina Marinho, mãe de Newton Coelho
(nome forte da política santa-luziense) e irmã de Manoel Marinho, pai dos
integrantes responsáveis pela criação da charanga. A homenagem também considerou o fato de Abel
Coelho da Silva ter sido interventor da cidade entre meados dos anos 60.
Antes de se apresentar em público na cidade, a primeira formação da Filarmônica Abel Coelho da Silva ensaiou desfile no terreiro da Fazenda Umburana, sendo os músicos transportados em um ônibus até o local. O momento também ficou marcado como uma homenagem à família de Manoel Marinho e Maria Eliza.
A fuga
da polícia e a apreensão dos instrumentos
Ainda
pelos idos dos anos 70, para fugir das denúncias feitas ao longo da noite por
causa dos batuques, a apresentação da charanga muitas vezes era interrompida
pela ordem da polícia. Naquele período, as luzes da cidade geradas pelo antigo
gerador movido a óleo, era mantidas acesas até às 22 horas. Depois desse
horário, qualquer movimentação passava a ser suspeita. Em um dos episódios mais
cômicos, o delegado orientou os animados jovens da charanga a seguirem o show
longe das casas da cidade, de preferência na saída para a estrada que dava
acesso ao Rio Grande do Norte. Para evitar o barulho dentro do perímetro urbano,
a animação da charanga pulou a parede do cemitério, que àquela época ficava
localizado em uma área ainda relativamente distante das ruas da cidade, deixando
o registro para a história, de uma apresentação feita para defuntos. Naquela
noite ninguém denunciou a charanga por perturbação ao sossego alheio...
Em
outro caso mais recente, já pelos anos 80, parte dos instrumentos da charanga chegou a ser retido
pela polícia militar depois de uma denúncia de que a algazarra dos jovens
estava sendo concentrada próximo à Maternidade Maria Balbina da Conceição, que
ficava localizada entre as Ruas Anízio Marinho e Izabel Leopoldina. De fato
concreto, a festança acontecia na saída da cidade, próximo ao sítio de
Verinaldo - mesmo assim, a ação da denúncia terminou com Jorge de Toinha, um
dos integrantes preso e os demais que participavam do momento escapando no
bagageiro da bicicleta de Dãe, que cobrava frete para deixar cada um dos amigos
em casa.
A apreensão de parte dos instrumentos nesse caso aprisionou também a alegria dos
demais integrantes, que conseguiram somente dois dias depois do fato, soltar
Jorge de Toinha após o delegado não encontrar nenhum motivo para mantê-lo
detido. Quanto aos instrumentos, a liberação só ocorreu por motivo de ordem do
prefeito Mário Primo de Araújo, Marão.
Com
a charanga longe das grades e nenhum dos seus integrantes preso, a música
novamente ganhou liberdade e com direito
a desfile de caminhonete pelas ruas da cidade patrocinado por Marão, em um dia
que terminou com o canto da composição de Chacrinha “as águas vão rolar… se a polícia
por isso me prender… Mas na última hora me soltar, eu pego a saca, saca,
saca-rolha, ninguém me agarra..” sendo
essa uma das últimas histórias de charanga.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
VELHAS NOITES DE ANO NOVO
Noite de ano de 2008. Arquivo: Ricardo Souza |
Por Rafael Medeiros
Por
muito tempo, sobretudo antes de 1984, quando o João Pedro de Várzea surgiu como
um grande evento, as noites de ano, como eram chamados os réveillons pela
população varzeense, se notabilizavam como a principal festividade do ano no
município.
O
costume de juntar as famílias para festejar em harmonia brindando ao novo ano
que se iniciava era uma tradição celebrada por todos na cidade, principalmente
aqueles mais religiosos, que frequentavam as missas de fim de ano e, a fim de
confraternizar entre familiares e amigos da comunidade, já tinham o hábito de
reservar previamente suas mesas, as quais geralmente eram organizadas nas
intermediações da Igreja de São Francisco.
Feriado
de confraternização universal, o dia 1º de janeiro tem o poder especial de
proporcionar sensações de recomeço a cada habitante do planeta, de virar
páginas além das folhinhas do calendário gregoriano e de reinventar sonhos
humanos na virada do ano. Para o varzeense, além da renovação dos planos para o
ano novo, a passagem de ano também significou sempre uma oportunidade social de
rever velhos conhecidos das comunidades rurais do município, reencontrar familiares
e amigos que vinham de outros lugares visitar a terrinha.
E assim as festas de noite de ano foram
acontecendo e se remodelando com o tempo, ganhando novas roupagens com a
alegria de quem estreia o figurino que usará no réveillon, configurando-se,
portanto, como um dos mais importantes eventos para se colecionar novas
histórias e ensaiar velhas saudades.
Quando
as luzes se apagavam
Pelos idos da década de 1950, o
então distrito de Sabugirana, pertencente à cidade de Santa Luzia, encontrava-se
ainda nos primeiros passos do seu processo de urbanização. Dessa forma, os
ritos e festividades de passagem de ano resumiam-se à missa que era rezada em
homenagem ao novo ano; o padre piancoense Milton Arruda de Alencar,
disciplinado e polido nos gestos, rezava toda a missa em latim, como mandava a
tradição católica de seu tempo. No entanto, utilizava o momento do sermão para
se dirigir em português aos fiéis que se abancavam na pequena igreja para lhes
desejar um feliz ano novo e lhes falar acerca do significado dos ciclos que
inevitavelmente se renovam bem como das bem-aventuranças que permeiam todos os
eventos de recomeço.
Assim, quando o relógio da igreja
anunciava pontualmente as zero horas que oficialmente iniciavam o ano vindouro,
todas as luzes eram apagadas e as pessoas rezavam em agradecimento,
abraçando-se comovidas pelo ritual de passagem de ano, embaladas pelo badalar
dos sinos da igreja que tocavam sem parar.
Esta
tradição de apagar as luzes durante a missa de ano na hora exata da meia-noite perdurou
até a década de 1960, quando Padre Milton deixou a cidade de Várzea e foi
substituído pelo padre holandês Johannes Cornelis Lauwen, que, vindo para o
Brasil, adotara o nome de Padre Jerônimo e passara por cidades como Fortaleza,
Caicó, Mossoró, São João do Sabugi e Fagundes, até finalmente radicar-se no
município de Santa Luzia no dia 14 de maio de 1961. Não que Padre Jerônimo não
fosse adepto da tradição de apagar as luzes quando o relógio anunciasse a
passagem do ano e os sinos da igreja, alegres e solícitos, dessem as
boas-vindas ao ano novo. Não. O que ocorria é que, sendo responsável pela
paróquia de Santa Luzia, ele precisava celebrar as missas de ano em várias cidades
do Vale do Sabugi, passando a missa de Várzea a acontecer bem mais cedo, às
sete horas da noite.
Nos
pavilhões da Antônio Urgolino
Após
o final da missa, as pessoas tradicionalmente se dirigiam aos pavilhões que
eram montados na rua Antônio Urgolino, onde se divertiam com comes e bebes
esperando a hora mágica da passagem de ano, quando se confraternizariam em um
ano novinho em folha e festejariam até a madrugada.
Algumas
coisas que nos dias de hoje podem parecer banais eram particularmente
chamativas por esses tempos, como por exemplo, a banca de Manoel Duca, onde
fatias de abacaxi eram vendidas como o pedaço mais doce da festa, uma vez que a
produção de abacaxis não era comum na região do Seridó e o transporte desses
produtos não era uma opção comercialmente viável em virtude das escassas
condições econômicas da época, aliadas às dificuldades de traslado e à pouca
demanda de uma população ainda muito pequena. Assim, os abacaxis de Manoel Duca
eram, nesses réveillons, um artigo raro e disputado, cujo doce cítrico tinha
sabor de ano novo para os habitantes da cidade.
Essas
noites de ano nos pavilhões da Antônio Urgolino eram regados com a humildade e
simplicidade do povo varzeense, retrato de um período da história em que as
coisas eram mais difíceis para todo mundo. Mas a alegria e sinceridade nos
abraços jamais faltou para as pessoas dessa época, que demonstravam nos
pequenos gestos a união de uma comunidade em formação; união que se vivificava
desde os trabalhos que que se iniciavam na tarde do dia 31 de dezembro, quando
os trabalhadores se juntavam para varrer a rua ainda não pavimentada, juntar os
montinhos de terra e preparar um cenário limpo e agradável que mais tarde sem
distinção receberia todos que viessem confraternizar.
Terreno da Antônio Urgolino sendo preparado para uma noite de ano dos anos 1960 |
Por
esse tempo, pelos mesmos fins de tarde as pessoas já começavam a chegar de todas as comunidades rurais, gente que vinha para a missa,
outros que vinham beber e encontrar os amigos na cidade, gente que vinha
simplesmente se divertir na melhor festa do ano, rememorar os episódios do ano
velho e dar boas vindas ao ano novo na noite iluminada da cidade. O rito da
passagem de ano era profundamente significativo para os personagens que compunham
o cenário dessa época, varzeenses crédulos e apegados aos valores simbólicos
das pequenas coisas, como escrever em carvão na parede da casa a data do
primeiro dia do ano logo pela manhã ou
inaugurar o novo calendário anual na parede depois que chegava dos festejos de
noite de ano. Para cada varzeense, celebrar a festa da noite de ano era uma
forma metafórica de fechar um elo com o passado e iniciar uma nova história
repleta de capítulos melhores. A noite de ano era uma forma festiva de ter a
certeza definitiva que o ano anterior acabava de virar memória e que saudades
futuras começariam a ser escritas no dia seguinte.
1974:
o ano que nunca acabou
No
dia 31 de dezembro de 1974, a jovem Maria da Conceição Costa, conhecida como Ceicinha
de Rafael Manane, acordou empolgada e alegre, um pouco ansiosa talvez. Mais
tarde, naquele dia, o recém-inaugurado Clube Municipal estaria lotado e
receberia os festejos de noite de ano, e Conceição havia sido escolhida a
representante varzeense que brilharia no palco do mesmo em um concurso que
elegeria a miss do Vale do Sabugi.
Personagens
como Milton de Dedé Marinho, Bastinho Soares e a professora Raimunda Ramalho,
conhecidos pela organização e gosto pelas festas, haviam preparado o grande
evento de passagem de ano no Clube Municipal, na qual, entre as atrações da
noite, haveria a escolha da miss do Vale e para a qual Ceicinha de Rafael ensaiava
suas emoções desde que o sol se apresentou no horizonte, presenteando a cidade
com a última aurora do ano.
O
clima de festa tomava conta da cidade inteira e, conforme o dia passava, pouco
a pouco as ruas e a jovem praça Joaquim Marinho começavam a receber os
visitantes para aquela inesquecível noite de ano. Titi Macambira, dono de um caminhão
que usava para transporte de pessoas, veio do sítio Cordeiro, passando por
comunidades como Riacho de Fora e Caiçaras, enchendo a carroceria do veículo de
gente empolgada para os festejos da noite na cidade.
Às
sete horas da noite, como de costume, o padre Jerônimo Lawen, com nítida exultação
e vivacidade, celebrou a última missa do ano para uma igreja lotada de fiéis.
Simpático e atencioso para com a comunidade católica como lhe era peculiar, naquela
noite ele se despediu de cada fiel desejando a todos um feliz 1975 e
aproximadamente às oito e meia da noite, findada a missa, ele se dirigiu a Edson Cirilo, conhecido motorista santa-luziense que costumava fazer suas
viagens, e, entrando no novíssimo jipe azul-xingu ano 74 teria dito: “vamos
rápido, que hoje ainda temos Santa Luzia e São José para fazer!” – referindo-se
à rodada de missas que celebraria naquela noite no Vale do Sabugi. Cirilo
engatou a primeira e arrancou em direção a Santa Luzia, deixando para trás uma
cidade vibrante e feliz que lotava alegremente a praça e o patamar da igreja
aguardando a hora de se dirigir ao clube para coroar a noite de festa.
A
viagem começou como qualquer outra, com padre Jerônimo contente e à vontade
puxando aqui acolá algum assunto e Edson Cirilo com o pé firme no acelerador e
o olhar atento à estrada de barro (hoje rodovia estadual 233) iluminada apenas pelos
faróis do jipe, cuja luz arrojada contrastava com a mansidão da luz da lua que
por aquelas horas já clareava o horizonte varzeense em seu terceiro dia de
cheia.
No
entanto depois de algumas ladeiras vencidas e cerca de três quilômetros
percorridos, foi bem no fim de uma descida que aquela viagem até então
tranquila seria atravessada por um destino fatal: outro jipe, vindo em sentido
contrário, com certa velocidade e sobrepeso de pessoas, perdeu o controle ao
tentar desviar de uma valeta que ficava no meio da estrada, invadindo a contramão
e avançando contra o veículo dirigido por Edson Cirilo em que padre Jerônimo ocupava
o banco de passageiro.
O
então jovem motorista Edson Cirilo tentou usar de todas as habilidades que possuía
para evitar a colisão frontal, girando o volante para a direita e jogando o jipe
para fora da estrada, tencionando a todo custo segurar a direção a fim de evitar
o acidente. No entanto não conseguiu evitar o toque do outro veículo na lateral
do seu jipe, o que fez com o veículo em que estava o padre Jeronimo fosse jogado
violentamente contra os morrotes de barro da beira da estrada, capotando duas
vezes até finalmente parar. “Depois de capotar, o carro caiu de pé!”, relembra
Edson Cirilo, que recorda perfeitamente de tudo o que aconteceu naquela
fatídica noite.
Arremessado
para fora do veículo, padre Jerônimo já agonizava sem murmurar mais nenhuma palavra,
até falecer no meio do sertão; o mesmo sertão para o qual um dia viera da
Holanda realizar sua missão vocacional, dando ali, na beira da estrada, seu
último suspiro de vida, testemunhado apenas pela lua de dezembro e pelo desespero
de um jovem motorista que também apresentava graves machucados.
Na
estrada, o jipe que provocara o acidente havia fugido sem prestar socorro e
Edson Cirilo se encontrava sozinho tateando forças que não tinha em busca de ajuda.
Um motorista chamado Assis, que trabalhava para o comerciante santa-luziense Joanísio
da Mercearia, foi a primeira pessoa a parar e socorrer o motorista acidentado,
deparando-se então com a terrível notícia que dali a poucos minutos inevitavelmente
se espalharia pelo boca-a-boca e chocaria a todos nas cidades do vale do Sabugi
e circunvizinhanças.
Padre Jerônimo Lawen. Arquivo: Paróquia de Santa Luzia |
Em
Santa Luzia, os fiéis que já estranhavam a demora do padre, o qual geralmente
se destacava pela pontualidade europeia, receberam atônitos a triste notícia do
acidente. A partir dali o clima de festa acabava completamente, dando lugar à
comoção.
Quando
os primeiros registros sobre do acidente chegaram a Várzea, a vibração contagiante
de uma cidade em festa murchou automaticamente, e, como no poema de Drummond, a
festa acabou, a noite esfriou e o povo sumiu. A cidade, que se preparava para a
grande noite de ano no Clube Municipal, ficou em choque, com muitas pessoas se
dirigindo ao local do acidente para se certificar do terrível acontecido com os
próprios olhos, outras chorando amparadas pelos familiares e amigos, e os
bancos da praça esvaziando-se pouco a pouco. Titi Macambira, cujo caminhão viera dos sítios do município lotado de gente animada para a festa de noite de ano,
começava a recolher as pessoas para fazer o caminho de volta, e no clube municipal
a festa que havia sido preparada era cancelada em meio à tristeza e frustração
de todos que já se faziam presentes por ali.
Para
a jovem Ceicinha de Rafael, cujo coração palpitava antes de empolgação e
alegria, coube a sensação triste de uma noite que jamais aconteceu, restando a
ela retirar a maquiagem e o vestido que cuidadosamente havia escolhido para a
sua hora de estrela. E todos regressaram para suas casas, comovidos e abalados
para aguardar a provavelmente mais triste passagem de ano da história
varzeense. Restava aos habitantes da cidade rezar pela alma de um padre que
tanto amor havia dedicado à comunidade católica da igreja de São Francisco e esperar um
ano vindouro de notícias melhores do que as trágicas e enternecidas notas acerca
do acidente que a rádio Espinharas de Patos divulgaria na manhã de 1º de
janeiro de 1975.
Acordes de sanfona, retretas no coreto e serestas de fim de século
Na
virada dos anos 70 para os anos 80, eram os sanfoneiros patoenses Evandro e
Manoel Valadares que davam ritmo dançante à noite de ano na antiga quadra que
se localizava em frente às tradicionais bodegas da rua Antônio Urgolino. Essas
festas de ano novo varavam a madrugada e por vezes amanheciam o dia saudando a
manhã do ano que acabava se se iniciar.
Com
a construção do coreto municipal, que substituiria a antiga da Antônio Urgolino,
as noites de ano tornaram-se ainda mais atraentes e robustas, aglutinando gente
de todas as comunidades e municípios vizinhos, animados pelas retretas da banda
filarmônica municipal ou atrações de música ao vivo contratadas pela prefeitura.
Várzea era, então referência nas festas de passagem de ano e o coreto municipal
se fazia conhecer como o local ideal das festividades de noite de ano.
Com
o advento do João Pedro, porém, que principalmente a partir dos anos 90, passou
a obter destaque de principal festa da cidade, as noites de ano passaram a
figurar em segundo lugar na preferência dos varzeenses quanto às festas de rua
da cidade, e pouco a pouco o público que antes lotava a quadra e o coreto,
começou a minguar. E então as noites de ano passaram a adotar um aspecto mais
familiar e local, migrando depois para a praça Joaquim Marinho, onde ganhou uma
roupagem mais moderna, com contagem regressiva na passagem de ano e show de
fogos de artifício.
Muitas
atrações musicais da terra comandaram os festejos de noite ano entre os anos 90
e 2000, como Carlinhos, Bibi de Garra, Junior de Vale e Maguila, o mago dos teclados, que tocou na inesquecível
passagem de ano de 2000, um ano permeado pela mística da cultura popular. Maguila,
que há muitos anos não se apresentava em sua cidade natal, naquela noite animou
um público privilegiado que entrava para a história ao presenciar a entrada triunfal
do último ano século XX e do segundo milênio. Naquela noite, a seresta
rememorou sons e tempos antigos, e as velhas gerações que antes abrilhantavam
as festas no clube ou no coreto municipal se sentiram vivamente representadas.
Atualmente
as noites de ano, por mais que sigam sem o brilho apaixonado das antigas festas,
continuam acontecendo na cidade e juntando na rua os varzeenses que desejam
abraçar seus conterrâneos após a passagem de ano. Seja como for, o brilho nos
olhares não se apaga, tampouco o calor dos abraços sinceros, e por mais que as
noites de ano antigas tenham se tornado memória das gerações passadas, a rua, a
igreja e a praça permanecem convidativas e hospitaleiras virando os réveillons com radiosos votos de feliz ano novo.
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
BALCÃO DE BODEGA
Por Epitácio Germano
Papel
para embrulhar sabão de barra, sacos de pano a meia altura sentados em
prateleiras de madeira divididos com arroz, milho e feijão e, um pouco mais
acima, no vinco do cimento da velha parede algumas rapaduras compradas no
Brejo. Todos esses itens eram predominantes no cardápio que era ofertado pelas
antigas bodegas de rua ao longo de todo o século XX. Mas se tratando sobre o
meado da década 1940, esse período é ainda marcado, pelo desenho social de uma
população estritamente rural; não somente em número de habitantes, mas também,
pelos costumes daqueles que chegaram para habitar o Povoado Presidente Epitácio
Pessoa no início do século, e depois, permanecendo até a denominação do
Distrito de Sabugirana, formalizado através de decreto pelo Governo da Paraíba,
no dia 15 de novembro de 1938, condicionando o território a uma
responsabilidade administrativa maior pertencente ao município de Santa Luzia.
Com
traços urbanos ainda tímidos para época, os balcões de bodegas mais
tradicionais do antigo Distrito de Sabugirana e, que perduraram por várias
décadas, até mesmo ao marco da elevação à categoria de cidade, condicionando o
nome de Várzea, foram erguidos por Trovão e Zé Borges.
Os
dois estabelecimentos dividiram o contexto da economia local funcionando no
mesmo endereço físico, ambos localizados na Rua Antônio Urgolino, no Centro, em
uma das quatro primeiras vias que logo receberia o investimento de infraestrutura de
paralelepípedos e com vista lateral privilegiada à Igreja de São Francisco de
Assis e a posição do sol nascente. A via onde as bodegas mantinham os seus negócios
ativos com a freguesia, coincidência ou não, recebeu o nome de Antônio Urgolino,
um dos responsáveis ao lado de Manoel Pecador, pela construção da primeira
latada de rua coberta com palhas de coqueiro, em janeiro de 1926, com o intuito
de oferecer aos chefes de família e produtores rurais que passavam pelo trecho,
água, rapadura e farinha.
A
latada durou alguns anos e, logo depois veio a construção do Mercado Público, o
que possibilitou uma condição de melhor estrutura, para que o comércio local ainda
modesto se moldasse aos traços da modernidade dos anos 50. Nesse mesmo período,
o Distrito de Sabugirana vivenciava o progresso da extração da scheelita,
minério explorado na antiga Mina da Quixaba. Além de Trovão e Zé Borges,
Chiquinho Elias, Manoel Evaristo e Tião Germano também foram administradores no segmento do
comércio de bodegas.
Uma
meiota para apagar a poeira
As
bodegas daquele tempo vendiam de tudo, inclusive, costumavam reservar um espaço
ao fundo do prédio para servir uma meiota de cachaça como aperitivo, aos
fregueses mais empolgados e, que geralmente, mantinham o apreço por uma dose do
líquido que passarinho não bebe para limpar a poeira da estrada de terra que
ficava presa na garganta.
Trovão na sua bodega em 2011. Arquivo: Epitácio Germano |
A
concorrência Trovão x Zé Borges marcou um roteiro econômico de quase meio
século no calendário dos varzeenses, e, claro,
o atendimento de muitas gerações, causando não somente mudanças nos
preços dos produtos que eram expostos pelas prateleiras e escritos a mão, como
também boas histórias. E, um dos costumes mais comentados pelos fregueses da
época, era o olhar atencioso de Zé Borges para identificar o cliente que
adentrava em seu estabelecimento apenas para consultar os valores dos produtos
e depois caminhava a bodega concorrente, e em seguida, retornava depois de
alguns minutos para confirmar a compra. O freguês, então, ao lançar novamente o
questionamento sobre determinados preços, logo ouvia de Zé Borges: “Compre lá
em Trovão. É mais barato e você estava lá! Ele é bonzinho!”
Aqueles
mais espertos costumavam trocar de Rua para não serem flagrados antes de
entrarem na bodega concorrente ou caminhavam na ponta do pé sobre a calçada,
seguindo à risca da sombra projetada pelo sol sobre as pontas de telhados das
casas da Rua, conseguindo assim, a façanha de fechar o ângulo da visão de quem
estava por trás do balcão da bodega para realizar o atendimento.
“Fiado só de madrugada e aqui é fechado”
Outro
caso bastante comum visto do balcão da bodega de Zé Borges acontecia quando um
cliente chegava tentando fazer uma compra sem ter o dinheiro para pagar. Pode
ser fiado? Questiona o cliente. Fiado passou de madrugada e aqui é fechado,
responde Zé Borges.
O comerciante Zé Borges, dono de pérolas impagáveis. |
A
distância entre as duas bodegas era de apenas 20 braças, o equivalente a cerca
de 44 metros, espaço suficiente e que acumulou ao longo do tempo o enredo de
muitas memórias, envolvendo até mesmo, a infância da garotada dos anos 1980 que
negociavam sacos de farelo de trigo cheios de material de alumínio reciclável
na bodega de Trovão.
A
memória passa, mas a história fica registrada.
A
concorrência das antigas bodegas ao longo da Rua Antônio Urgolino persistiu por
mais de três décadas, até que Zé Borges encerrou suas atividades e se
aposentou. Com o desenvolvimento urbano embalado pelo êxodo rural a partir da
construção das primeiras casas populares patrocinadas com o dinheiro público na
cidade e mais ruas sendo ladrilhadas com pedras de paralelepípedo, logo o
comércio local passou também a ganhar novos ambientes, inclusive, alterando a
sua própria nomenclatura, com o título de mercadinho.
Com
cores mais vivas, a estrutura física do mercadinho apresentava uma divisão com
prateleiras em metal, balcão de madeira de marceneiro na entrada e, ainda, a
presença das famosas máquinas de calcular compras com impressora e que
entregavam o resultado em tempo real, um equipamento que representava
tecnologia à época, e que todo cliente após chegar em casa mantinha o costume
de pegar a folha com a impressão de cada produto e conferir os valores.
Apesar
de todas as transformações colocadas pelo tempo e até mesmo o aumento da
concorrência, Trovão se manteve em atividade, ultrapassando até mesmo a
passagem dos séculos XX e XXI e a tão esperada chegada dos anos 2000, somando
63 anos de vida dedicados ao trabalho do comércio.
Do
surgimento do primeiro mercadinho, o processo nasce, diretamente, da inspiração do elo familiar, e de pai pra filho. Jorge Figueiredo, filho de Trovão inaugura uma
nova página no capítulo da história local, com a instalação do Mercadinho São
Jorge, passando a dividir a concorrência com outros que foram surgindo e
administrados por Waldemar de Anastácio,
Edson Soares, Janilton de Neco e Ostinho.
Diferente
do início do século onde tudo que era comprado e tinha saída de uma única Rua,
hoje o comércio local é presente em todos os pontos cardeais da cidade, bem
como, novas sessões de negócios surgiram.
E, como todo passo é importante, o primeiro dessa história revela uma
inspiração primária na contabilidade de quem ganha o pão de cada dia com o
comércio - a oportunidade precede o negócio, mesmo que isso signifique disputar
o mesmo cliente em uma única rua.