Por Rafael Medeiros
A
primeira coisa que o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez diz em sua
última obra, “Viver para contar” é: “a vida não é a que a gente viveu e sim a
que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” É uma frase forte,
contundente. Mas ilustra muito bem o sentimento que todos nós temos quando nos
damos a refletir sobre o curso nossas vidas, sobretudo a parte que ficou para
trás e só a enxergamos no cantinho do retrovisor. Lembrar é viver pela segunda vez,
principalmente quando a lembrança é dourada pela cor da saudade, por isso é tão
importante que conservemos vivas e indestrutíveis as nossas melhores memórias.
Certamente
é assim que se sente todo varzeense ao pousar os olhos em alguma
fotografia do passado e se deixar teletransportar para alguma fresta do
tempo-espaço de sua própria história. Várzea tem, conforme o dito popular, “uma
história comprida” e uma memória contada pelas ruas e por cada construção
edificada desde os seus primórdios ainda no século XIX. Particularmente sempre
considerei entre todos os prédios da cidade o Coreto que fica em frente à
Igreja Católica de São Francisco o coração do centro da cidade. Mais até do que
a praça Joaquim Marinho. O coreto, dotado de uma beleza singela, quase despretensiosa,
tem em si um pouco de cada varzeense, seja o adulto que se sentou por lá para
descansar as pernas ou a criança que fez sua infância valer a pena inventando
uma nova brincadeira por ali.
Construído
em 1985 na gestão do prefeito Babá Batista, o coreto municipal sempre chamou a
atenção pela sua arquitetura simples e original, bem como pelo ponto
estratégico onde foi erguido: entre a praça Francisco Pergentino e a Igreja Católica
de São Francisco. O local era o point favorito daqueles, sobretudo os homens,
que não chegavam a tempo de achar assentos vagos na igreja, mas não queriam
perder as palavras do vigário e assim assistiam às missas ao ar livre, com os
rostos acariciados pela brisa sertaneja que vinha do leste. O coreto sempre
representou bem o abraço entre a fé da igreja e a alegria da praça, por isso
era o palco ideal para se organizar os presépios natalinos em dezembro ou receber
apresentações de fanfarras e gincanas escolares.
Basicamente
todos têm alguma história para contar, passada embaixo daquela laje solitária
que é amparada pelas suas doze pilastras de sustentação. Alguém já se amparou
de uma chuva desavisada por ali, algum casal de namorados porventura já
confessou juras de amor em uma noite tranquila testemunhados apenas pelo busto
histórico de Francisco Pergentino que fica logo no pezinho do coreto.
Entre
os anos 80, 90 e 2000 os meninos da cidade transformavam o cimento queimado do
coreto no teatro de suas criatividades e eram abundantes as brincadeiras de
barra-bandeira, matada e futebol de travinha naquele local. Os mais espertos já
sabiam que precisavam tomar todo o cuidado do mundo porque o delegado e os
representantes do juizado de menores sempre apareciam por lá para acabar com a festa
da gurizada traquina, confiscando as bolas e os chinelos dos meninos. Não raro
um menino voltava para casa de pés descalços no calçamento quente porque dera
um vacilo de deixar justamente as suas como baliza para as traves do futebol
improvisado e ao se dar conta da presença do delegado saiu em disparada
esquecendo os chinelos para confisco fácil da severa lei municipal.
Era
comum também ver jovens e adolescentes abraçados nas pilastras brincando de pão
quente, que é como se denomina um jogo de ocupação de espaços muito comum entre
os varzeenses. Consistia basicamente em dominar o território de cada pilastra
enquanto um integrante do jogo ficava no meio do coreto até alguém gritar “pão
quente!” e todos tinham de mudar de posição, intervalo justamente em que o
jogador que estava no meio tentava tomar a vaga de alguém que vacilasse na hora
de mudar de pilastra. Havia turmas de amigos que consumiam boa parte das noites
jogando pão quente e nunca é demais suspeitar que algumas paqueras começaram
por ali.
O
tempo passa e as histórias vão ficando a tecer a memória daqueles que vivenciaram
suas próprias aventuras no coreto municipal, que, silencioso e imponente, segue
compondo a paisagem do mesmo local em um frequente colecionar de saudades,
fazendo cada varzeense perceber por si mesmo a importância da história bem como
de todos os seus atores. Cabe, portanto, indagar: o que seria do artista sem o
palco? Nesse contexto, o coreto foi palco de todos nós e é nossa responsabilidade que ele o continue sendo para que as gerações futuras também imprimam por lá suas próprias narrativas. Afinal, como bem disse outro escritor, dessa vez o português José Saramago, “somos a memória que temos e a
responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade
talvez não mereçamos existir.”
Parabéns pelo belo texto, além de muito bem redigido é capaz de nos fazer voltar no tempo. Recordei de muitos momentos simples e felizes que vivi no coreto, em especial ter tocado na filarmônica ao lado do meu pai.
ResponderExcluirMaravilhoso e primoroso! Simples assim! Parabéns, você é formidável.
ResponderExcluirVárzea merece muito mais do que tem. Já passou da hora de dizer BASTA!
ResponderExcluirSimples um palavra só Rafael " gênio " 👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirBelo texto meu amigo Rafael Medeiros
ResponderExcluirÉ isso aí. Esse texto diz o que os varzeenses pensam. Viva o coreto municipal, símbolo cultural da gente.
ResponderExcluirEu me vi correndo,brincando e sorrindo entre essas palavras... podem até derrubar, mas não conseguirão apagar da minha memória
ResponderExcluirQue saudade do coreto! Revivi muita coisa lendo esse texto.
ResponderExcluir