terça-feira, 6 de abril de 2021

AS LONGAS FILAS NOS TEMPOS DE ESTIAGEM

Por Epitácio Germano

O sol ainda não raiou. São quatro e vinte da madrugada do mês de agosto de 1999, e apesar do avanço dos ponteiros no relógio, o amanhecer continua preguiçoso. Na Rua Manoel Dantas, algumas pessoas conversam arrastando suas latas e outros ainda distantes aproveitam para colocar suas carroças de tanque de zinco e rodas de bicicleta, em posição de fila antes da chegada do caminhão-pipa. Apesar da cruviana que corta a madrugada, o tempo é seco. Há dois anos a chuva não chega como deveria, com intensidade, e os açudes vazios continuam  rachados e sem esperança para transbordar. A passagem entre os séculos XX e XXI vem sendo marcada nas pequenas cidades do Sertão paraibano pela longa estiagem e a presença de caminhões-pipa.
O dia para quem precisa de água nesta época começa antes do "galo cantar", expressão comum e usada para o início da atividade no campo. Nas cidades interioranas, esse aspecto rural é muito forte e, em alguns momentos, se confundem com o próprio traço urbano do desenvolvimento. Idosos, mães, filhos, crianças, a sede não tem idade e, pouco a pouco, a corrida pela água faz fila.     

Entre um minuto e outro do correr da madrugada, algumas pessoas também discutem e outras empurram suas latas como estratégia de demarcar o espaço. Chico Fernandes, um dos mais antigos moradores da Rua José Tibúrcio, localizada no coração da cidade, é um dos personagens que mais figuram nesse período; primeiro chega com suas latas de zinco e, depois cuidadosamente, encosta também outros baldes. Entre uma arrumação e outra, Chico Fernandes, ainda retorna à casa, e ao caminhar pelo muro e sentir o cheiro do café, aproveita para tomar ‘um pequeno na xícara’ e depois descer o muro novamente, agora com sua carroça com tanque de zinco, amarrado com algumas ligas. A fila, nesse momento já se aproxima da casa de Lúcia de Quinca, quando se avista da Praça Joaquim Marinho, um outro senhor, Francisco Assis dos Santos “Cacheado” que percorre lentamente o chão ladrilhado de pedras, e se aconchega no canteiro do pergolado. Logo, será a hora de varrer o patamar da igreja. 

Da esquina de Paulo de Trovão, alguém grita “o caminhão está chegando!” e logo o ronco do motor corta a conversa da vizinhança que observa o clarear do dia sobre a barragem de Chiquinho Elias. O caminhão-pipa chega e a fila de latas e carroças agora se mistura com cada um dos moradores do quarteirão, lado-a-lado de seus equipamentos. A missão nesse momento é correr levando água para casa, e depois voltar e tentar conseguir alguma sobra. O caminhão é conduzido por “Novo de Seu Maurício”, motorista conhecido na cidade e que tem como missão diária, por este tempo, trazer a água para o consumo humano. Na corrida pela água, alguns batem suas latas, outros escorregam pelo caminho e, sem perdoar, a plateia premia o tombo com algumas risadas. 

As longas filas à espera dos caminhões-pipa também se formam em pelo menos outros quatro pontos da cidade: Rua Anízio Marinho, na altura da Farmácia de Amaro; Rua Francisco Freire de Araújo, próximo a casa de Chico Mexixe; e Rua Onze de Janeiro, na frente da casa de Zé Serafim. A divisão territorial dentro do espaço urbano é feita em uma tentativa de atender a todos, observando o menor sacrifício possível considerando as condições do trajeto e distância. Em algumas casas, há os populares tanques de cimento, o que possibilita um bom armazenamento de água às famílias, e outras apenas tambores, que funcionam como reservatórios de distribuição, separando a água de acordo com a necessidade. Cada ponto da cidade tem suas peculiaridades, personagens e bizarras brincadeiras compartilhadas entre vizinhos.

Às seis e cinquenta da manhã, exatamente duas horas e trinta minutos depois do início das filas de caminhões-pipa, tomo o meu café matinal ao lado de meu avô e de meus pais sentados a mesa da cozinha, e em seguida, saio e caminho ao longo da Rua Anízio Marinho, com destino a assistir mais um dia de aula ainda na primeira fase do ensino fundamental na Escola Estadual Odilon de Figueiredo, observando os paralelepípedos aguados pela água trazida pelos caminhões e colocadas em carroças e latas. A imagem não é a mesma da madrugada, mas denuncia o que antes ocorrera. Um tempo de dificuldade, sofrimento, que faltava água, mas nunca solidariedade.


 

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