Por Epitácio Germano
Papel
para embrulhar sabão de barra, sacos de pano a meia altura sentados em
prateleiras de madeira divididos com arroz, milho e feijão e, um pouco mais
acima, no vinco do cimento da velha parede algumas rapaduras compradas no
Brejo. Todos esses itens eram predominantes no cardápio que era ofertado pelas
antigas bodegas de rua ao longo de todo o século XX. Mas se tratando sobre o
meado da década 1940, esse período é ainda marcado, pelo desenho social de uma
população estritamente rural; não somente em número de habitantes, mas também,
pelos costumes daqueles que chegaram para habitar o Povoado Presidente Epitácio
Pessoa no início do século, e depois, permanecendo até a denominação do
Distrito de Sabugirana, formalizado através de decreto pelo Governo da Paraíba,
no dia 15 de novembro de 1938, condicionando o território a uma
responsabilidade administrativa maior pertencente ao município de Santa Luzia.
Com
traços urbanos ainda tímidos para época, os balcões de bodegas mais
tradicionais do antigo Distrito de Sabugirana e, que perduraram por várias
décadas, até mesmo ao marco da elevação à categoria de cidade, condicionando o
nome de Várzea, foram erguidos por Trovão e Zé Borges.
Os
dois estabelecimentos dividiram o contexto da economia local funcionando no
mesmo endereço físico, ambos localizados na Rua Antônio Urgolino, no Centro, em
uma das quatro primeiras vias que logo receberia o investimento de infraestrutura de
paralelepípedos e com vista lateral privilegiada à Igreja de São Francisco de
Assis e a posição do sol nascente. A via onde as bodegas mantinham os seus negócios
ativos com a freguesia, coincidência ou não, recebeu o nome de Antônio Urgolino,
um dos responsáveis ao lado de Manoel Pecador, pela construção da primeira
latada de rua coberta com palhas de coqueiro, em janeiro de 1926, com o intuito
de oferecer aos chefes de família e produtores rurais que passavam pelo trecho,
água, rapadura e farinha.
A
latada durou alguns anos e, logo depois veio a construção do Mercado Público, o
que possibilitou uma condição de melhor estrutura, para que o comércio local ainda
modesto se moldasse aos traços da modernidade dos anos 50. Nesse mesmo período,
o Distrito de Sabugirana vivenciava o progresso da extração da scheelita,
minério explorado na antiga Mina da Quixaba. Além de Trovão e Zé Borges,
Chiquinho Elias, Manoel Evaristo e Tião Germano também foram administradores no segmento do
comércio de bodegas.
Uma
meiota para apagar a poeira
As
bodegas daquele tempo vendiam de tudo, inclusive, costumavam reservar um espaço
ao fundo do prédio para servir uma meiota de cachaça como aperitivo, aos
fregueses mais empolgados e, que geralmente, mantinham o apreço por uma dose do
líquido que passarinho não bebe para limpar a poeira da estrada de terra que
ficava presa na garganta.
Trovão na sua bodega em 2011. Arquivo: Epitácio Germano |
A
concorrência Trovão x Zé Borges marcou um roteiro econômico de quase meio
século no calendário dos varzeenses, e, claro,
o atendimento de muitas gerações, causando não somente mudanças nos
preços dos produtos que eram expostos pelas prateleiras e escritos a mão, como
também boas histórias. E, um dos costumes mais comentados pelos fregueses da
época, era o olhar atencioso de Zé Borges para identificar o cliente que
adentrava em seu estabelecimento apenas para consultar os valores dos produtos
e depois caminhava a bodega concorrente, e em seguida, retornava depois de
alguns minutos para confirmar a compra. O freguês, então, ao lançar novamente o
questionamento sobre determinados preços, logo ouvia de Zé Borges: “Compre lá
em Trovão. É mais barato e você estava lá! Ele é bonzinho!”
Aqueles
mais espertos costumavam trocar de Rua para não serem flagrados antes de
entrarem na bodega concorrente ou caminhavam na ponta do pé sobre a calçada,
seguindo à risca da sombra projetada pelo sol sobre as pontas de telhados das
casas da Rua, conseguindo assim, a façanha de fechar o ângulo da visão de quem
estava por trás do balcão da bodega para realizar o atendimento.
“Fiado só de madrugada e aqui é fechado”
Outro
caso bastante comum visto do balcão da bodega de Zé Borges acontecia quando um
cliente chegava tentando fazer uma compra sem ter o dinheiro para pagar. Pode
ser fiado? Questiona o cliente. Fiado passou de madrugada e aqui é fechado,
responde Zé Borges.
O comerciante Zé Borges, dono de pérolas impagáveis. |
A
distância entre as duas bodegas era de apenas 20 braças, o equivalente a cerca
de 44 metros, espaço suficiente e que acumulou ao longo do tempo o enredo de
muitas memórias, envolvendo até mesmo, a infância da garotada dos anos 1980 que
negociavam sacos de farelo de trigo cheios de material de alumínio reciclável
na bodega de Trovão.
A
memória passa, mas a história fica registrada.
A
concorrência das antigas bodegas ao longo da Rua Antônio Urgolino persistiu por
mais de três décadas, até que Zé Borges encerrou suas atividades e se
aposentou. Com o desenvolvimento urbano embalado pelo êxodo rural a partir da
construção das primeiras casas populares patrocinadas com o dinheiro público na
cidade e mais ruas sendo ladrilhadas com pedras de paralelepípedo, logo o
comércio local passou também a ganhar novos ambientes, inclusive, alterando a
sua própria nomenclatura, com o título de mercadinho.
Com
cores mais vivas, a estrutura física do mercadinho apresentava uma divisão com
prateleiras em metal, balcão de madeira de marceneiro na entrada e, ainda, a
presença das famosas máquinas de calcular compras com impressora e que
entregavam o resultado em tempo real, um equipamento que representava
tecnologia à época, e que todo cliente após chegar em casa mantinha o costume
de pegar a folha com a impressão de cada produto e conferir os valores.
Apesar
de todas as transformações colocadas pelo tempo e até mesmo o aumento da
concorrência, Trovão se manteve em atividade, ultrapassando até mesmo a
passagem dos séculos XX e XXI e a tão esperada chegada dos anos 2000, somando
63 anos de vida dedicados ao trabalho do comércio.
Do
surgimento do primeiro mercadinho, o processo nasce, diretamente, da inspiração do elo familiar, e de pai pra filho. Jorge Figueiredo, filho de Trovão inaugura uma
nova página no capítulo da história local, com a instalação do Mercadinho São
Jorge, passando a dividir a concorrência com outros que foram surgindo e
administrados por Waldemar de Anastácio,
Edson Soares, Janilton de Neco e Ostinho.
Diferente
do início do século onde tudo que era comprado e tinha saída de uma única Rua,
hoje o comércio local é presente em todos os pontos cardeais da cidade, bem
como, novas sessões de negócios surgiram.
E, como todo passo é importante, o primeiro dessa história revela uma
inspiração primária na contabilidade de quem ganha o pão de cada dia com o
comércio - a oportunidade precede o negócio, mesmo que isso signifique disputar
o mesmo cliente em uma única rua.
Parabéns, presenciei 90% do que foi escrito.zé Borges,se você perguntasse, quanto é essa agulha por exemplo, ele dizia você tem quanto aí na mão, se vc dissesse 1 Cruzeiro, ele respondia pois é 1 Cruzeiro.era o rei da sabedoria. Kkkk
ResponderExcluirBoa leitura. Muitas saudades.
ResponderExcluirSensacional! Quem foi desta epoca com certeza reviveu tudo quando leu esse texto.
ResponderExcluirQue legal ler este texto. A historia de Trovão e Zé borges precisava ser contada. parabens!
ResponderExcluirCaramba que texto massa
ResponderExcluirValeu ai Epitácio!!!
Ora! esqueceram de mencionar que: o finado Zé Borges,sempre após o almoço negociava com alguns garotos ,algumas balas de brinde para os que fizessem cócegas nos pés dele que,sentado numa cadeira os ergui até o balcão,eu fui algumas vezes participante dessa negociação. Parabéns a todos que relataram esses fatos nos transportando de volta a nossa infância feliz nesta pequena e pacata cidade.
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