Noite de ano de 2008. Arquivo: Ricardo Souza |
Por Rafael Medeiros
Por
muito tempo, sobretudo antes de 1984, quando o João Pedro de Várzea surgiu como
um grande evento, as noites de ano, como eram chamados os réveillons pela
população varzeense, se notabilizavam como a principal festividade do ano no
município.
O
costume de juntar as famílias para festejar em harmonia brindando ao novo ano
que se iniciava era uma tradição celebrada por todos na cidade, principalmente
aqueles mais religiosos, que frequentavam as missas de fim de ano e, a fim de
confraternizar entre familiares e amigos da comunidade, já tinham o hábito de
reservar previamente suas mesas, as quais geralmente eram organizadas nas
intermediações da Igreja de São Francisco.
Feriado
de confraternização universal, o dia 1º de janeiro tem o poder especial de
proporcionar sensações de recomeço a cada habitante do planeta, de virar
páginas além das folhinhas do calendário gregoriano e de reinventar sonhos
humanos na virada do ano. Para o varzeense, além da renovação dos planos para o
ano novo, a passagem de ano também significou sempre uma oportunidade social de
rever velhos conhecidos das comunidades rurais do município, reencontrar familiares
e amigos que vinham de outros lugares visitar a terrinha.
E assim as festas de noite de ano foram
acontecendo e se remodelando com o tempo, ganhando novas roupagens com a
alegria de quem estreia o figurino que usará no réveillon, configurando-se,
portanto, como um dos mais importantes eventos para se colecionar novas
histórias e ensaiar velhas saudades.
Quando
as luzes se apagavam
Pelos idos da década de 1950, o
então distrito de Sabugirana, pertencente à cidade de Santa Luzia, encontrava-se
ainda nos primeiros passos do seu processo de urbanização. Dessa forma, os
ritos e festividades de passagem de ano resumiam-se à missa que era rezada em
homenagem ao novo ano; o padre piancoense Milton Arruda de Alencar,
disciplinado e polido nos gestos, rezava toda a missa em latim, como mandava a
tradição católica de seu tempo. No entanto, utilizava o momento do sermão para
se dirigir em português aos fiéis que se abancavam na pequena igreja para lhes
desejar um feliz ano novo e lhes falar acerca do significado dos ciclos que
inevitavelmente se renovam bem como das bem-aventuranças que permeiam todos os
eventos de recomeço.
Assim, quando o relógio da igreja
anunciava pontualmente as zero horas que oficialmente iniciavam o ano vindouro,
todas as luzes eram apagadas e as pessoas rezavam em agradecimento,
abraçando-se comovidas pelo ritual de passagem de ano, embaladas pelo badalar
dos sinos da igreja que tocavam sem parar.
Esta
tradição de apagar as luzes durante a missa de ano na hora exata da meia-noite perdurou
até a década de 1960, quando Padre Milton deixou a cidade de Várzea e foi
substituído pelo padre holandês Johannes Cornelis Lauwen, que, vindo para o
Brasil, adotara o nome de Padre Jerônimo e passara por cidades como Fortaleza,
Caicó, Mossoró, São João do Sabugi e Fagundes, até finalmente radicar-se no
município de Santa Luzia no dia 14 de maio de 1961. Não que Padre Jerônimo não
fosse adepto da tradição de apagar as luzes quando o relógio anunciasse a
passagem do ano e os sinos da igreja, alegres e solícitos, dessem as
boas-vindas ao ano novo. Não. O que ocorria é que, sendo responsável pela
paróquia de Santa Luzia, ele precisava celebrar as missas de ano em várias cidades
do Vale do Sabugi, passando a missa de Várzea a acontecer bem mais cedo, às
sete horas da noite.
Nos
pavilhões da Antônio Urgolino
Após
o final da missa, as pessoas tradicionalmente se dirigiam aos pavilhões que
eram montados na rua Antônio Urgolino, onde se divertiam com comes e bebes
esperando a hora mágica da passagem de ano, quando se confraternizariam em um
ano novinho em folha e festejariam até a madrugada.
Algumas
coisas que nos dias de hoje podem parecer banais eram particularmente
chamativas por esses tempos, como por exemplo, a banca de Manoel Duca, onde
fatias de abacaxi eram vendidas como o pedaço mais doce da festa, uma vez que a
produção de abacaxis não era comum na região do Seridó e o transporte desses
produtos não era uma opção comercialmente viável em virtude das escassas
condições econômicas da época, aliadas às dificuldades de traslado e à pouca
demanda de uma população ainda muito pequena. Assim, os abacaxis de Manoel Duca
eram, nesses réveillons, um artigo raro e disputado, cujo doce cítrico tinha
sabor de ano novo para os habitantes da cidade.
Essas
noites de ano nos pavilhões da Antônio Urgolino eram regados com a humildade e
simplicidade do povo varzeense, retrato de um período da história em que as
coisas eram mais difíceis para todo mundo. Mas a alegria e sinceridade nos
abraços jamais faltou para as pessoas dessa época, que demonstravam nos
pequenos gestos a união de uma comunidade em formação; união que se vivificava
desde os trabalhos que que se iniciavam na tarde do dia 31 de dezembro, quando
os trabalhadores se juntavam para varrer a rua ainda não pavimentada, juntar os
montinhos de terra e preparar um cenário limpo e agradável que mais tarde sem
distinção receberia todos que viessem confraternizar.
Terreno da Antônio Urgolino sendo preparado para uma noite de ano dos anos 1960 |
Por
esse tempo, pelos mesmos fins de tarde as pessoas já começavam a chegar de todas as comunidades rurais, gente que vinha para a missa,
outros que vinham beber e encontrar os amigos na cidade, gente que vinha
simplesmente se divertir na melhor festa do ano, rememorar os episódios do ano
velho e dar boas vindas ao ano novo na noite iluminada da cidade. O rito da
passagem de ano era profundamente significativo para os personagens que compunham
o cenário dessa época, varzeenses crédulos e apegados aos valores simbólicos
das pequenas coisas, como escrever em carvão na parede da casa a data do
primeiro dia do ano logo pela manhã ou
inaugurar o novo calendário anual na parede depois que chegava dos festejos de
noite de ano. Para cada varzeense, celebrar a festa da noite de ano era uma
forma metafórica de fechar um elo com o passado e iniciar uma nova história
repleta de capítulos melhores. A noite de ano era uma forma festiva de ter a
certeza definitiva que o ano anterior acabava de virar memória e que saudades
futuras começariam a ser escritas no dia seguinte.
1974:
o ano que nunca acabou
No
dia 31 de dezembro de 1974, a jovem Maria da Conceição Costa, conhecida como Ceicinha
de Rafael Manane, acordou empolgada e alegre, um pouco ansiosa talvez. Mais
tarde, naquele dia, o recém-inaugurado Clube Municipal estaria lotado e
receberia os festejos de noite de ano, e Conceição havia sido escolhida a
representante varzeense que brilharia no palco do mesmo em um concurso que
elegeria a miss do Vale do Sabugi.
Personagens
como Milton de Dedé Marinho, Bastinho Soares e a professora Raimunda Ramalho,
conhecidos pela organização e gosto pelas festas, haviam preparado o grande
evento de passagem de ano no Clube Municipal, na qual, entre as atrações da
noite, haveria a escolha da miss do Vale e para a qual Ceicinha de Rafael ensaiava
suas emoções desde que o sol se apresentou no horizonte, presenteando a cidade
com a última aurora do ano.
O
clima de festa tomava conta da cidade inteira e, conforme o dia passava, pouco
a pouco as ruas e a jovem praça Joaquim Marinho começavam a receber os
visitantes para aquela inesquecível noite de ano. Titi Macambira, dono de um caminhão
que usava para transporte de pessoas, veio do sítio Cordeiro, passando por
comunidades como Riacho de Fora e Caiçaras, enchendo a carroceria do veículo de
gente empolgada para os festejos da noite na cidade.
Às
sete horas da noite, como de costume, o padre Jerônimo Lawen, com nítida exultação
e vivacidade, celebrou a última missa do ano para uma igreja lotada de fiéis.
Simpático e atencioso para com a comunidade católica como lhe era peculiar, naquela
noite ele se despediu de cada fiel desejando a todos um feliz 1975 e
aproximadamente às oito e meia da noite, findada a missa, ele se dirigiu a Edson Cirilo, conhecido motorista santa-luziense que costumava fazer suas
viagens, e, entrando no novíssimo jipe azul-xingu ano 74 teria dito: “vamos
rápido, que hoje ainda temos Santa Luzia e São José para fazer!” – referindo-se
à rodada de missas que celebraria naquela noite no Vale do Sabugi. Cirilo
engatou a primeira e arrancou em direção a Santa Luzia, deixando para trás uma
cidade vibrante e feliz que lotava alegremente a praça e o patamar da igreja
aguardando a hora de se dirigir ao clube para coroar a noite de festa.
A
viagem começou como qualquer outra, com padre Jerônimo contente e à vontade
puxando aqui acolá algum assunto e Edson Cirilo com o pé firme no acelerador e
o olhar atento à estrada de barro (hoje rodovia estadual 233) iluminada apenas pelos
faróis do jipe, cuja luz arrojada contrastava com a mansidão da luz da lua que
por aquelas horas já clareava o horizonte varzeense em seu terceiro dia de
cheia.
No
entanto depois de algumas ladeiras vencidas e cerca de três quilômetros
percorridos, foi bem no fim de uma descida que aquela viagem até então
tranquila seria atravessada por um destino fatal: outro jipe, vindo em sentido
contrário, com certa velocidade e sobrepeso de pessoas, perdeu o controle ao
tentar desviar de uma valeta que ficava no meio da estrada, invadindo a contramão
e avançando contra o veículo dirigido por Edson Cirilo em que padre Jerônimo ocupava
o banco de passageiro.
O
então jovem motorista Edson Cirilo tentou usar de todas as habilidades que possuía
para evitar a colisão frontal, girando o volante para a direita e jogando o jipe
para fora da estrada, tencionando a todo custo segurar a direção a fim de evitar
o acidente. No entanto não conseguiu evitar o toque do outro veículo na lateral
do seu jipe, o que fez com o veículo em que estava o padre Jeronimo fosse jogado
violentamente contra os morrotes de barro da beira da estrada, capotando duas
vezes até finalmente parar. “Depois de capotar, o carro caiu de pé!”, relembra
Edson Cirilo, que recorda perfeitamente de tudo o que aconteceu naquela
fatídica noite.
Arremessado
para fora do veículo, padre Jerônimo já agonizava sem murmurar mais nenhuma palavra,
até falecer no meio do sertão; o mesmo sertão para o qual um dia viera da
Holanda realizar sua missão vocacional, dando ali, na beira da estrada, seu
último suspiro de vida, testemunhado apenas pela lua de dezembro e pelo desespero
de um jovem motorista que também apresentava graves machucados.
Na
estrada, o jipe que provocara o acidente havia fugido sem prestar socorro e
Edson Cirilo se encontrava sozinho tateando forças que não tinha em busca de ajuda.
Um motorista chamado Assis, que trabalhava para o comerciante santa-luziense Joanísio
da Mercearia, foi a primeira pessoa a parar e socorrer o motorista acidentado,
deparando-se então com a terrível notícia que dali a poucos minutos inevitavelmente
se espalharia pelo boca-a-boca e chocaria a todos nas cidades do vale do Sabugi
e circunvizinhanças.
Padre Jerônimo Lawen. Arquivo: Paróquia de Santa Luzia |
Em
Santa Luzia, os fiéis que já estranhavam a demora do padre, o qual geralmente
se destacava pela pontualidade europeia, receberam atônitos a triste notícia do
acidente. A partir dali o clima de festa acabava completamente, dando lugar à
comoção.
Quando
os primeiros registros sobre do acidente chegaram a Várzea, a vibração contagiante
de uma cidade em festa murchou automaticamente, e, como no poema de Drummond, a
festa acabou, a noite esfriou e o povo sumiu. A cidade, que se preparava para a
grande noite de ano no Clube Municipal, ficou em choque, com muitas pessoas se
dirigindo ao local do acidente para se certificar do terrível acontecido com os
próprios olhos, outras chorando amparadas pelos familiares e amigos, e os
bancos da praça esvaziando-se pouco a pouco. Titi Macambira, cujo caminhão viera dos sítios do município lotado de gente animada para a festa de noite de ano,
começava a recolher as pessoas para fazer o caminho de volta, e no clube municipal
a festa que havia sido preparada era cancelada em meio à tristeza e frustração
de todos que já se faziam presentes por ali.
Para
a jovem Ceicinha de Rafael, cujo coração palpitava antes de empolgação e
alegria, coube a sensação triste de uma noite que jamais aconteceu, restando a
ela retirar a maquiagem e o vestido que cuidadosamente havia escolhido para a
sua hora de estrela. E todos regressaram para suas casas, comovidos e abalados
para aguardar a provavelmente mais triste passagem de ano da história
varzeense. Restava aos habitantes da cidade rezar pela alma de um padre que
tanto amor havia dedicado à comunidade católica da igreja de São Francisco e esperar um
ano vindouro de notícias melhores do que as trágicas e enternecidas notas acerca
do acidente que a rádio Espinharas de Patos divulgaria na manhã de 1º de
janeiro de 1975.
Acordes de sanfona, retretas no coreto e serestas de fim de século
Na
virada dos anos 70 para os anos 80, eram os sanfoneiros patoenses Evandro e
Manoel Valadares que davam ritmo dançante à noite de ano na antiga quadra que
se localizava em frente às tradicionais bodegas da rua Antônio Urgolino. Essas
festas de ano novo varavam a madrugada e por vezes amanheciam o dia saudando a
manhã do ano que acabava se se iniciar.
Com
a construção do coreto municipal, que substituiria a antiga da Antônio Urgolino,
as noites de ano tornaram-se ainda mais atraentes e robustas, aglutinando gente
de todas as comunidades e municípios vizinhos, animados pelas retretas da banda
filarmônica municipal ou atrações de música ao vivo contratadas pela prefeitura.
Várzea era, então referência nas festas de passagem de ano e o coreto municipal
se fazia conhecer como o local ideal das festividades de noite de ano.
Com
o advento do João Pedro, porém, que principalmente a partir dos anos 90, passou
a obter destaque de principal festa da cidade, as noites de ano passaram a
figurar em segundo lugar na preferência dos varzeenses quanto às festas de rua
da cidade, e pouco a pouco o público que antes lotava a quadra e o coreto,
começou a minguar. E então as noites de ano passaram a adotar um aspecto mais
familiar e local, migrando depois para a praça Joaquim Marinho, onde ganhou uma
roupagem mais moderna, com contagem regressiva na passagem de ano e show de
fogos de artifício.
Muitas
atrações musicais da terra comandaram os festejos de noite ano entre os anos 90
e 2000, como Carlinhos, Bibi de Garra, Junior de Vale e Maguila, o mago dos teclados, que tocou na inesquecível
passagem de ano de 2000, um ano permeado pela mística da cultura popular. Maguila,
que há muitos anos não se apresentava em sua cidade natal, naquela noite animou
um público privilegiado que entrava para a história ao presenciar a entrada triunfal
do último ano século XX e do segundo milênio. Naquela noite, a seresta
rememorou sons e tempos antigos, e as velhas gerações que antes abrilhantavam
as festas no clube ou no coreto municipal se sentiram vivamente representadas.
Atualmente
as noites de ano, por mais que sigam sem o brilho apaixonado das antigas festas,
continuam acontecendo na cidade e juntando na rua os varzeenses que desejam
abraçar seus conterrâneos após a passagem de ano. Seja como for, o brilho nos
olhares não se apaga, tampouco o calor dos abraços sinceros, e por mais que as
noites de ano antigas tenham se tornado memória das gerações passadas, a rua, a
igreja e a praça permanecem convidativas e hospitaleiras virando os réveillons com radiosos votos de feliz ano novo.
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