Por: Rafael Medeiros
Imagine-se
a hora mais quente de um dia qualquer no início da década de 1990 em uma Várzea
que não existe mais. A nostalgia pinta do cinza da saudade a fotografia de uma
cidade ainda pouco desenvolvida, com muitas ruas sem pavimentação, casas bem
mais modestas, trânsito composto principalmente por bicicletas Monarks e Calois
que caprichavam nas franjas dos selins. Chiquinho de Zuza, por esses idos, é
famoso como exímio mecânico das magrelas dentro do município.
Quem, afinal, não se lembra das famosas
bicicletas de Tejo que, vermelhinhas, franjas ao vento, cruzavam a Anízio
Marinho na solidão das horas muito quentes, parando aqui acolá para uma discussãozinha política de plantão? Tomás
de Inácio Evaristo, por exemplo, é outro cidadão que sempre trazia a
bicicletinha como indelével companheira para as feiras que fazia semanalmente vindo
das Caiçaras para a cidade, dirigindo-se aos mercados de Zé Borges ou Trovão,
mais tarde expandindo as possibilidades para os mercadinhos de Jorge de Trovão,
Edson de Zé Padeiro, Ostinho e Amaro.
Ali,
bem no pingo do meio-dia, quando o mormaço de mais uma seca no sertão faz a
visão ficar turva e as silhuetas das ruas tremerem embaçadas, quase ninguém
anda nas calçadas, quase ninguém se arrisca a desafiar o sol escaldante em um
céu profundamente azul e sem nenhuma nuvem. Todos ficam abrejados do almoço e
do calor, naquela hora em que o cheiro das frituras faz as casas das ruas parecerem
uma só.
Alguns
ficavam sesteando no descanso de suas casas com as tevês ligadas nas reprises
dos Trapalhões que a rede Globo passava ou nos programas de esporte
característicos do horário. Muitos sintonizavam os rádios nas emissoras de
Caicó ou Patos para ouvir os noticiários policiais da região e os demais, em redes
ou cadeiras de balanço, preferiam se espreguiçar à sombra fria das algarobas,
que davam o pouco colorido verde à cidade.
Conforme
os minutos do início da tarde se arrastavam lentamente e as caminhonetes que
traziam os estudantes da zona rural começavam a chegar, já era possível
identificar alguns grupos isolados de meninos brincando de bole-boca, que era
como se chamavam os jogos de bola de gude com três buracos feitos na terra frouxa
dos canteiros e alinhados em forma de triângulo. Já existiam figurinhas
carimbadas fáceis de serem encontradas por ali antes das aulas (as quais alguns deles
geralmente gaseavam para continuar o jogo), como Batoré de Firmino Gavião, Miro
de Chico Papi, João Batista de Lindomar de Antônio Benjamin, Vaguinho de
Vildete, Babá de Osmar de João Cândido.
De
dentro de casa, dava pra ouvir a harmonia sinfônica dos passos adolescentes
que, em meio a risos e conversas, pouco antes das treze horas se dirigiam aos
colégios para as aulas da tarde. Como era uma época de poucos carros e motos
nas ruas, de vez em quando o que rompia o silêncio da tarde eram os carros de sorvete que
anunciavam aos quatro ventos:
-
Tá chegando o sorveteiro! São dez bolas de sorvete por 1 real! É gostoso, é
delicioso, é saboroso... Traga a vasilha, traga a vasilha!
E
a meninada enchia as ruas de pés descalços sem se incomodar com a quentura do
calçamento quente que queimava a sola dos calcanhares, voltando pra dentro das casas
em pura empolgação, com seus sorvetes azuis de pedacinhos do céu, que era sabor
o predileto da maioria.
Às
vezes a calma da tarde era rasgada quando um redemunho desses típicos de épocas
de seca se formava de repente e invadia as ruas levantando pro alto todas as
folhagens e resquícios de qualquer coisa que se encontrasse nas calçadas da
cidade. A poeira cobria e sempre havia alguém que não perdia a chance de gritar
bem alto:
-
Rapadura Preta!
Rapadura preta é uma expressão regional que praticamente todo sertanejo conhece, usada para expressar a euforia, o susto e a surpresa principalmente dos mais jovens sempre que um redemunho se forma nas ruas e, segundo a superstição de nossa gente, carrega diabo dentro do seu núcleo.
Rapadura preta é uma expressão regional que praticamente todo sertanejo conhece, usada para expressar a euforia, o susto e a surpresa principalmente dos mais jovens sempre que um redemunho se forma nas ruas e, segundo a superstição de nossa gente, carrega diabo dentro do seu núcleo.
Então as portas se fechavam às pressas, quem não estivesse corria para dentro de casa, bicicletas porventura encostadas nos troncos das algarobas caíam fazendo barulho. Depois, era um conferir de estragos, como telhas quebradas e entulho que conseguiu entrar pelos frechais. Então pouco a pouco as pessoas iam abrindo as portas, fazendo algum comentário com o vizinho, varrendo a terra mais grossa para fora, dando boas-vindas à tarde que recomeçava e, após a passagem do redemunho, parecia finalmente esfriar um pouco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário