Na
mesa de um bar todo mundo é sempre o maior, pois é lá onde derrama as tintas de
sua alegria, dizem os versos de Gonzaguinha eternizados por Alcione na canção
“Mesa de Bar”. Certamente esses versos traduzem uma verdade universal e contam
um pouco da história de cada ser humano que já sentiu a necessidade de sentar-se
à mesa de um bar para sarar em um copo de bebida as cicatrizes de uma semana
difícil ou mesmo quis encontrar na cerveja um motivo a mais para fazer
adormecerem as preocupações e em seu lugar borbulharem as pequenas alegrias da
vida diária.
Em
Várzea a história dos bares é escrita em muitos capítulos e passada em
múltiplos cenários. De espaços da boemia da velha guarda nos anos 60, 70, 80 e
90 a pontos de encontro da juventude nos anos mais recentes, a história da
cidade é contada também em cada bar inaugurado, em cada brinde, em cada copo
dedicado ao santo. Quem, como eu, foi da geração que viveu nos anos 90, por
exemplo, certamente ouviu falar dos tira-gostos servidos no Alvorada,
frequentou o bar e restaurante de Soró na saída da cidade ou foi servido por
Poroca com uma Brahma gelada no coreto municipal.
Fronteira Bar, o bar de Soró, início dos anos 90. |
Cresci
ouvindo que a cerveja mais gelada da cidade seria encontrada no boteco de Gersé
de Neco, espaço simples e exclusivo da rua Isabel Leopoldina, porque seria
resfriada em freezer de geladeira para clientes selecionados. Guardo memórias
de meu pai comprando cigarros em outro espaço famoso que figurou na fotografia
de Várzea e registra espaço na memória das pessoas pela espirituosidade de seu
proprietário: o barraco de Mocambo, que primeiramente situava-se na praça
Joaquim Marinho em frente ao Mercado, mudando-se em seguida para perto da
garagem da prefeitura municipal, para pouco tempo depois fechar, quando Mocambo
migrou para a região norte do Brasil. Foi lá onde lembro de ter tomado meu
primeiro guaraná, servido num copo descartável, enquanto meu pai ostentava um
cigarro Hollyood que acabara de acender para dar mais cor ao seu dia de feira.
Os
primeiros goles
Viajando
pela história, é possível perceber que mais Gersés e Mocambos ilustram a
crônica dos bares, bodegas e botecos que ajudaram a construir parte da
narrativa varzeense. Pelos anos 40 e 50, início da formação da cidade, ainda
não havia bares em Várzea, que por aqueles idos, não era emancipada
politicamente à condição de município, sendo chamada Distrito de Sabugirana.
Quem gostava de beber sua dose de aguardente, fazia-o nas bodegas. As mais
conhecidas por essa época eram as bodegas de Odon Pereira, Freire Malaquias e
Manoel Porfírio, esta conhecida popularmente como bodega da esquina. Mais
tarde, bodegueiros como Zé Borges, Miguel Evaristo e Trovão viriam também a servir
essas revigorantes doses de alegria em seus balcões. Era comum ver os chefes de
família, sobretudo os que vinham da zona rural, pedirem uma lapada de pinga
depois de fazerem a feira para voltarem para casa com o espírito mais leve,
dando um combustível extra para iniciar mais uma semana de trabalho.
Foi
somente a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70 que apareceram os primeiros bares da cidade,
inicialmente com João Cola e Chico de Valfredo. Eram estabelecimentos modestos,
mas muito importantes do ponto de vista histórico por figurarem entre os
primeiros do local e atender aos habitantes de uma cidade que, havia poucos
anos, acabara de alçar à condição de município.
O bar Ele e Ela, de Milton Dantas, inaugurado em agosto de 1973 abriu novos
patamares para os estabelecimentos de venda de bebidas e refeições leves na
cidade, configurando-se como um espaço social para lazer e convivência de
múltiplos públicos. Com um espaço amplo e sistema de som, o bar de Milton
Dantas atraía a juventude que buscava opções de divertimento, mas também a
velha guarda que se interessava mais por um bom papo esquentado por uma bicada de cachaça.
Mário
Pergentino, líder político de sua época era um dos frequentadores assíduos, bom
de bico que sempre foi. Com ele, muitos correligionários, autoridades
municipais e amigos também se reuniam no Ele e Ela. Algum tempo depois, ainda
nos anos 70, o bar de Milton Dantas mudaria de local e de nome, passando-se a
se chamar Bar Tungstênio e atendendo principalmente aos engenheiros da Mina da
Quixaba, cuja extração de minérios constituía a principal atividade econômica
do município. Milton Dantas se destacava pela simpatia no bom atendimento bem como pela organização de seu estabelecimento, que enquanto esteve funcionando sempre ocupou
lugar de destaque no coração dos varzeenses, sendo considerado o mais elegante dos bares de sua época e um dos melhores de toda a história da cidade.
O
Bar Central
Provavelmente
foi pelos meados da década de 1970 que a história dos bares na cidade de Várzea
deu uma guinada determinante em seu roteiro, modernizando as formas de
atendimento e multiplicando a clientela para além dos limites do município. Isso
porque foi no período entre 1973 e 1974 que Milton Biléu, então proprietário de
um estabelecimento modesto na rua Manoel Dantas resolveu instalar seu bar na
rua Afonso Cândido, em frente à Praça Joaquim Marinho, inaugurando então o Bar
Central, que viria a ser o ponto mais agitado da cidade nos finais de semana, juntando
ali pessoas de toda a região, inclusive de cidades vizinhas, como Santa Luzia e
Ouro Branco. Milton era um showman no ofício de bartender, atendendo a cada
cliente de forma exclusiva, com o sorriso estampado no rosto e o olho vivo nas
gorjetas. Não se importava de ficar até tarde da noite e fechar o bar apenas
depois que o último cliente resolvesse se retirar da mesa. Só então fechava a
porta do bar e se retirava calmo pelo sereno da noite varzeense rumo à sua residência,
com o seu hábito singular de riscar suavemente a chave pelas paredes das casas
por onde passava.
Também
não fazia cerimônia caso algum cliente batesse cedinho à sua porta pedindo pelo
amor da madrugada para que ele abrisse o bar antes que o sol iluminasse o dia.
Quando o cliente tinha dinheiro também tinha razão e Milton saltava da cama sem
pensar duas vezes em começar mais cedo seu dia de trabalho. Um desses clientes
vip era João Cândido, dono do armazém São João na cidade de Patos, que
apreciava as festas realizadas no clube municipal de Várzea, contanto que
quando saísse da festa Milton se disponibilizasse a abrir o Bar Central para
que ele pudesse dedicar seus brindes ao sol que estava nascendo.
Milton Bileu (à esquerda) no Bar Central em 1992. |
Apesar
de vender também destilados como rum e conhaque Dreher, o carro chefe do Bar
Central sempre foi a cerveja Antarctica, com uma média de consumo que variava
entre quarenta e cinquenta grades por final de semana. Milton preferia
trabalhar sozinho, pois gostava de dinheiro e do lucro integral que o Bar
Central lhe reservava e também, digamos que não confiava muito na honestidade total
de todos os garçons; mesmo sozinho, impressionantemente dava conta de atender a
todas as pessoas que lotavam o seu bar e faziam os finais de semana se vestirem
de dias de festa na cidade.
Quando
perguntados, pelo menos quatro a cada cinco varzeenses relembram com saudade
algum episódio no bar de Milton Biléu e afirmam que aquele foi um dos maiores bares que Várzea já teve. O Bar Central funcionou normalmente até 1996, ano
da morte de seu inesquecível proprietário. Anos depois, no decorrer da década
de 2000, Cesar de Tutuca e Carlos de Iramir tentaram competentemente ressuscitar
as antigas alegrias daquele velho bar, mas a tentativa durou pouco tempo.
Afinal, o Bar Central era também o bar de Milton, e sem Milton a cerveja jamais
teve o mesmo sabor.
Doses
de política e música
Era
no bar de Elias que aconteciam as principais resenhas que agitavam o cotidiano
da política local dos anos 80 e 90, estendendo-se pelas décadas seguintes,
sendo fácil encontrar por lá personagens simbólicos como Raiff Ramalho, Mário
de Cândido, Junior de Biu, Zeca de Pompeu, Lêonidas, Galego etc. Para
Elias o bom atendimento não tinha cor partidária, sendo bem-vindos em seu
estabelecimento integrantes de todos os grupos da política varzeense, contanto
que houvesse o respeito mútuo e a bandeira da paz fosse eleita como a principal
das bandeiras no território das disputas de poder. Inicialmente localizado
também na rua Afonso Cândido com o nome de Bar da Praça, o bar de Elias
migraria nos anos 90 para a José Tibúrcio, onde continua instalado até hoje,
discreto e hospitaleiro para com os atores e simpatizantes da cena política do
município.
Localizado
na esquina da Afonso Cândido com a Francisco das Chagas de Brito, o bar de Amauri
conseguia cativar o público mais jovem no final dos anos 90. Com dois ambientes, um
térreo, que servia mais de lanchonete e um primeiro andar, Amauri dava ao bar
uma atmosfera de boate ou pub americano, atraindo para lá comemorações como
aniversários e aulas da saudade. Era também o point dos dindins e picolés, que
os estudantes compravam aos montes ao entardecer, alguns indo para suas casas
na cidade, outros subindo nas caminhonetes que os levariam aos sítios enquanto
o som do bar tocava os hits do momento para animar o fim do dia, como
Magníficos e Lairton dos Teclados.
No
início dos anos 2000, década caracterizada pelo advento do DVD, o bar de
Brizola era quem ditava o ritmo do som à praça Joaquim Marinho, que, àquela
altura, ainda era o ponto de encontro mais movimentado dos adolescentes e
jovens. O gosto eclético de Brizola costumava agradar a diferentes públicos,
tocando hits que variavam de Zé Ramalho a Companhia do Calypso. Muitas vezes, ele
se sentava com seus clientes e bebia com eles, ajudando a consumir a própria
cerveja que havia vendido e contrapondo-se ao dito popular, “amigos, amigos,
negócios à parte.”
Entre
uma faixa musical e outra tocada no bar de Brizola, Demar aumentava o volume do
seu sistema de som na esquina do mercado público, com um DVD diferente para
atrair clientes seduzidos pelo gosto musical. Geralmente sucessos de Calcinha
Preta e Limão com Mel estavam entre os tocados, e essa competição garantia o
movimento e a animação às noites da praça Joaquim Marinho.
O
preferido dos boêmios
Na
mesma Afonso Cândido, a poucos metros dali, Alcindo Rocha atendia um público,
digamos, um pouco mais folclórico, remanescente da geração de jovens que viveu
nos anos 70 e 80 e jurou ser jovem para sempre. O bar de Alcindo era o espaço
predileto dos boêmios e alcóolatras da cidade que buscavam afogar no copo de
cachaça as dores que magoam a alma e inundam o peito. Em seu recinto decorado
de simplicidade, Alcindo recebia todos de igual maneira, sem jamais destilar
qualquer discriminação de raça ou classe, com seus litrões de cerveja sempre
disponíveis, solícitos a lavar as doses de quem buscou beber alegrias num gole
de aguardente. Além disso, o caracterizava o bom papo de anfitrião: leve,
alegre e bem humorado para fazer jus às suas raízes pedradaguenses. Enquanto ele
servia mais uma dose pura de Pitu para um de seus clientes assíduos como Dandão
ou Libâneo, o barulho dos tacos açoitando as bolas de bilhar anunciava que
havia mais gente no estabelecimento, mas que se limitava à diversão mais barata
proporcionada pela sinuca que ficava na calçada do bar. Era ali que personagens
como Romildo, Zé Preto e Sebastião Maracanã podiam ser vistos, integrando parte
da paisagem varzeense.
Alírio
de Maria Elisa, um conhecido frequentador do bar, costumava viajar direto de Campina
Grande e depois de percorrer os mais de 150 quilômetros de distância, estacionava
o carro na calçada bar para beber até a madrugada. De certa feita, depois de
tomar vários goles de cerveja, ele teria chamado Alcindo num particular e
perguntado:
-
Alcindo, me responda, mas me responda com sinceridade: eu sou um bêbado muito abusado?
Alcindo, aproveitando-se da sinceridade que
sempre foi sua marca registrada respondeu com um “é, e muito!”, ao que Alírio teria retrucado:
-
Mas, lembre-se que estou pagando, então vou continuar bebendo!
Personagem marcante desse tempo, Dilma Amélia era uma visitante recorrente desse mesmo estabelecimento, superando os paradigmas machistas da época para provar que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na mesa do bar. Como ela, mulheres como Lúcia Santos e Anita Filó também não escondiam o gosto pelas sensações proporcionadas por um copo de cerveja e vez ou outra eram, Lúcia principalmente, vistas no balcão do bar pedindo uma gelada e quebrando os tabus de seu tempo. Dilma, por sua vez, era entre as mulheres talvez a figura mais atuante no palco dos bares e botecos, ser humano de espírito livre e criativo que sempre foi.
Viúva
e mãe de quatro filhos, figura conhecida da rua Manoel Dantas, onde residia,
Dilma tinha alma boêmia e não se importava em quebrar as convenções ao
frequentar o bar, um espaço majoritariamente masculino, e tomava suas biritas
sem culpa, (botando sempre sua cerveja para esquentar um pouco antes de tomá-la
porque, segundo ela, beber cerveja muito gelada fazia mal à saúde) rindo e
cantando para espantar as sofrências que povoam a vida.
Novos
ares
Com
a construção da praça Valdemar Marinho e do Parque do Juazeiro entre 2006 e
2007, novos ambientes de lazer, mais amplos e arejados pela brisa do leste
seridoense surgiram para servir de opções para a juventude e a população em
geral. Foi então que os quiosques ganharam a cena e a preferência das novas
gerações, que curtiam mais os shows musicais e jogos de futebol ao vivo nos
telões proporcionados pelos donos dos quiosques. Com isso, os bares do centro
foram perdendo espaço, até chegar ao ponto de alguns deles fecharem as portas. E
junto com o silêncio de cada bar que fechava, a praça Joaquim Marinho também
foi se calando conforme seu movimento diminuía, e pouco a pouco também foi
perdendo seu brilho noturno. Não é exagero dizer que os bares que outrora a
circundavam davam vida à praça Joaquim Marinho e nesse caso o inverso
também corresponde à realidade.
Há,
é claro, aqueles que representam a resistência e continuam abertos em pleno
funcionamento, prontos para conquistar as novas gerações ou atender ao
saudosista que porventura prefira algo mais raiz e ligado às origens que
remetam à sua própria juventude. Os que fecharam ou se transformaram em novos
estabelecimentos comerciais continuam existindo vivos e alegres na memória de
quem um dia os frequentou, guardando consigo momentos e emoções alheias, convidando
talvez a um último gole para “brindar em homenagem àqueles que já não vem mais”
como dizem os versos da mesma canção de Gonzaguinha e cimentando saudades nas
velhas fachadas.
Os bares da praça realmente avivavam aquele lugar ... saudades daqueles tempos.
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