quarta-feira, 14 de julho de 2021

ESPAÇOS DA BOEMIA


Por Rafael Medeiros


Na mesa de um bar todo mundo é sempre o maior, pois é lá onde derrama as tintas de sua alegria, dizem os versos de Gonzaguinha eternizados por Alcione na canção “Mesa de Bar”. Certamente esses versos traduzem uma verdade universal e contam um pouco da história de cada ser humano que já sentiu a necessidade de sentar-se à mesa de um bar para sarar em um copo de bebida as cicatrizes de uma semana difícil ou mesmo quis encontrar na cerveja um motivo a mais para fazer adormecerem as preocupações e em seu lugar borbulharem as pequenas alegrias da vida diária.

Em Várzea a história dos bares é escrita em muitos capítulos e passada em múltiplos cenários. De espaços da boemia da velha guarda nos anos 60, 70, 80 e 90 a pontos de encontro da juventude nos anos mais recentes, a história da cidade é contada também em cada bar inaugurado, em cada brinde, em cada copo dedicado ao santo. Quem, como eu, foi da geração que viveu nos anos 90, por exemplo, certamente ouviu falar dos tira-gostos servidos no Alvorada, frequentou o bar e restaurante de Soró na saída da cidade ou foi servido por Poroca com uma Brahma gelada no coreto municipal.

Fronteira Bar, o bar de Soró, início dos anos 90.

Cresci ouvindo que a cerveja mais gelada da cidade seria encontrada no boteco de Gersé de Neco, espaço simples e exclusivo da rua Isabel Leopoldina, porque seria resfriada em freezer de geladeira para clientes selecionados. Guardo memórias de meu pai comprando cigarros em outro espaço famoso que figurou na fotografia de Várzea e registra espaço na memória das pessoas pela espirituosidade de seu proprietário: o barraco de Mocambo, que primeiramente situava-se na praça Joaquim Marinho em frente ao Mercado, mudando-se em seguida para perto da garagem da prefeitura municipal, para pouco tempo depois fechar, quando Mocambo migrou para a região norte do Brasil. Foi lá onde lembro de ter tomado meu primeiro guaraná, servido num copo descartável, enquanto meu pai ostentava um cigarro Hollyood que acabara de acender para dar mais cor ao seu dia de feira.

 

Os primeiros goles

 

Viajando pela história, é possível perceber que mais Gersés e Mocambos ilustram a crônica dos bares, bodegas e botecos que ajudaram a construir parte da narrativa varzeense. Pelos anos 40 e 50, início da formação da cidade, ainda não havia bares em Várzea, que por aqueles idos, não era emancipada politicamente à condição de município, sendo chamada Distrito de Sabugirana. Quem gostava de beber sua dose de aguardente, fazia-o nas bodegas. As mais conhecidas por essa época eram as bodegas de Odon Pereira, Freire Malaquias e Manoel Porfírio, esta conhecida popularmente como bodega da esquina. Mais tarde, bodegueiros como Zé Borges, Miguel Evaristo e Trovão viriam também a servir essas revigorantes doses de alegria em seus balcões. Era comum ver os chefes de família, sobretudo os que vinham da zona rural, pedirem uma lapada de pinga depois de fazerem a feira para voltarem para casa com o espírito mais leve, dando um combustível extra para iniciar mais uma semana de trabalho.

Foi somente a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70 que apareceram os primeiros bares da cidade, inicialmente com João Cola e Chico de Valfredo. Eram estabelecimentos modestos, mas muito importantes do ponto de vista histórico por figurarem entre os primeiros do local e atender aos habitantes de uma cidade que, havia poucos anos, acabara de alçar à condição de município.

O bar Ele e Ela, de Milton Dantas, inaugurado em agosto de 1973 abriu novos patamares para os estabelecimentos de venda de bebidas e refeições leves na cidade, configurando-se como um espaço social para lazer e convivência de múltiplos públicos. Com um espaço amplo e sistema de som, o bar de Milton Dantas atraía a juventude que buscava opções de divertimento, mas também a velha guarda que se interessava mais por um bom papo esquentado por uma bicada de cachaça.

Mário Pergentino, líder político de sua época era um dos frequentadores assíduos, bom de bico que sempre foi. Com ele, muitos correligionários, autoridades municipais e amigos também se reuniam no Ele e Ela. Algum tempo depois, ainda nos anos 70, o bar de Milton Dantas mudaria de local e de nome, passando-se a se chamar Bar Tungstênio e atendendo principalmente aos engenheiros da Mina da Quixaba, cuja extração de minérios constituía a principal atividade econômica do município. Milton Dantas se destacava pela simpatia no bom atendimento bem como pela organização de seu estabelecimento, que enquanto esteve funcionando sempre ocupou lugar de destaque no coração dos varzeenses, sendo considerado o mais elegante dos bares de sua época e um dos melhores de toda a história da cidade.

 

O Bar Central

 

Provavelmente foi pelos meados da década de 1970 que a história dos bares na cidade de Várzea deu uma guinada determinante em seu roteiro, modernizando as formas de atendimento e multiplicando a clientela para além dos limites do município. Isso porque foi no período entre 1973 e 1974 que Milton Biléu, então proprietário de um estabelecimento modesto na rua Manoel Dantas resolveu instalar seu bar na rua Afonso Cândido, em frente à Praça Joaquim Marinho, inaugurando então o Bar Central, que viria a ser o ponto mais agitado da cidade nos finais de semana, juntando ali pessoas de toda a região, inclusive de cidades vizinhas, como Santa Luzia e Ouro Branco. Milton era um showman no ofício de bartender, atendendo a cada cliente de forma exclusiva, com o sorriso estampado no rosto e o olho vivo nas gorjetas. Não se importava de ficar até tarde da noite e fechar o bar apenas depois que o último cliente resolvesse se retirar da mesa. Só então fechava a porta do bar e se retirava calmo pelo sereno da noite varzeense rumo à sua residência, com o seu hábito singular de riscar suavemente a chave pelas paredes das casas por onde passava.

Também não fazia cerimônia caso algum cliente batesse cedinho à sua porta pedindo pelo amor da madrugada para que ele abrisse o bar antes que o sol iluminasse o dia. Quando o cliente tinha dinheiro também tinha razão e Milton saltava da cama sem pensar duas vezes em começar mais cedo seu dia de trabalho. Um desses clientes vip era João Cândido, dono do armazém São João na cidade de Patos, que apreciava as festas realizadas no clube municipal de Várzea, contanto que quando saísse da festa Milton se disponibilizasse a abrir o Bar Central para que ele pudesse dedicar seus brindes ao sol que estava nascendo.

Milton Bileu (à esquerda) no Bar Central em 1992.

Apesar de vender também destilados como rum e conhaque Dreher, o carro chefe do Bar Central sempre foi a cerveja Antarctica, com uma média de consumo que variava entre quarenta e cinquenta grades por final de semana. Milton preferia trabalhar sozinho, pois gostava de dinheiro e do lucro integral que o Bar Central lhe reservava e também, digamos que não confiava muito na honestidade total de todos os garçons; mesmo sozinho, impressionantemente dava conta de atender a todas as pessoas que lotavam o seu bar e faziam os finais de semana se vestirem de dias de festa na cidade.

Quando perguntados, pelo menos quatro a cada cinco varzeenses relembram com saudade algum episódio no bar de Milton Biléu e afirmam que aquele foi um dos maiores bares que Várzea já teve. O Bar Central funcionou normalmente até 1996, ano da morte de seu inesquecível proprietário. Anos depois, no decorrer da década de 2000, Cesar de Tutuca e Carlos de Iramir tentaram competentemente ressuscitar as antigas alegrias daquele velho bar, mas a tentativa durou pouco tempo. Afinal, o Bar Central era também o bar de Milton, e sem Milton a cerveja jamais teve o mesmo sabor.

 

Doses de política e música

 

Era no bar de Elias que aconteciam as principais resenhas que agitavam o cotidiano da política local dos anos 80 e 90, estendendo-se pelas décadas seguintes, sendo fácil encontrar por lá personagens simbólicos como Raiff Ramalho, Mário de Cândido, Junior de Biu, Zeca de Pompeu, Lêonidas, Galego etc. Para Elias o bom atendimento não tinha cor partidária, sendo bem-vindos em seu estabelecimento integrantes de todos os grupos da política varzeense, contanto que houvesse o respeito mútuo e a bandeira da paz fosse eleita como a principal das bandeiras no território das disputas de poder. Inicialmente localizado também na rua Afonso Cândido com o nome de Bar da Praça, o bar de Elias migraria nos anos 90 para a José Tibúrcio, onde continua instalado até hoje, discreto e hospitaleiro para com os atores e simpatizantes da cena política do município.

Localizado na esquina da Afonso Cândido com a Francisco das Chagas de Brito, o bar de Amauri conseguia cativar o público mais jovem no final dos anos 90. Com dois ambientes, um térreo, que servia mais de lanchonete e um primeiro andar, Amauri dava ao bar uma atmosfera de boate ou pub americano, atraindo para lá comemorações como aniversários e aulas da saudade. Era também o point dos dindins e picolés, que os estudantes compravam aos montes ao entardecer, alguns indo para suas casas na cidade, outros subindo nas caminhonetes que os levariam aos sítios enquanto o som do bar tocava os hits do momento para animar o fim do dia, como Magníficos e Lairton dos Teclados.

No início dos anos 2000, década caracterizada pelo advento do DVD, o bar de Brizola era quem ditava o ritmo do som à praça Joaquim Marinho, que, àquela altura, ainda era o ponto de encontro mais movimentado dos adolescentes e jovens. O gosto eclético de Brizola costumava agradar a diferentes públicos, tocando hits que variavam de Zé Ramalho a Companhia do Calypso. Muitas vezes, ele se sentava com seus clientes e bebia com eles, ajudando a consumir a própria cerveja que havia vendido e contrapondo-se ao dito popular, “amigos, amigos, negócios à parte.”

Entre uma faixa musical e outra tocada no bar de Brizola, Demar aumentava o volume do seu sistema de som na esquina do mercado público, com um DVD diferente para atrair clientes seduzidos pelo gosto musical. Geralmente sucessos de Calcinha Preta e Limão com Mel estavam entre os tocados, e essa competição garantia o movimento e a animação às noites da praça Joaquim Marinho.

 

O preferido dos boêmios

 

Na mesma Afonso Cândido, a poucos metros dali, Alcindo Rocha atendia um público, digamos, um pouco mais folclórico, remanescente da geração de jovens que viveu nos anos 70 e 80 e jurou ser jovem para sempre. O bar de Alcindo era o espaço predileto dos boêmios e alcóolatras da cidade que buscavam afogar no copo de cachaça as dores que magoam a alma e inundam o peito. Em seu recinto decorado de simplicidade, Alcindo recebia todos de igual maneira, sem jamais destilar qualquer discriminação de raça ou classe, com seus litrões de cerveja sempre disponíveis, solícitos a lavar as doses de quem buscou beber alegrias num gole de aguardente. Além disso, o caracterizava o bom papo de anfitrião: leve, alegre e bem humorado para fazer jus às suas raízes pedradaguenses. Enquanto ele servia mais uma dose pura de Pitu para um de seus clientes assíduos como Dandão ou Libâneo, o barulho dos tacos açoitando as bolas de bilhar anunciava que havia mais gente no estabelecimento, mas que se limitava à diversão mais barata proporcionada pela sinuca que ficava na calçada do bar. Era ali que personagens como Romildo, Zé Preto e Sebastião Maracanã podiam ser vistos, integrando parte da paisagem varzeense.

Alírio de Maria Elisa, um conhecido frequentador do bar, costumava viajar direto de Campina Grande e depois de percorrer os mais de 150 quilômetros de distância, estacionava o carro na calçada bar para beber até a madrugada. De certa feita, depois de tomar vários goles de cerveja, ele teria chamado Alcindo num particular e perguntado:

- Alcindo, me responda, mas me responda com sinceridade: eu sou um bêbado muito abusado? 

 Alcindo, aproveitando-se da sinceridade que sempre foi sua marca registrada respondeu com um “é, e muito!”, ao que  Alírio teria retrucado:

- Mas, lembre-se que estou pagando, então vou continuar bebendo!

Personagem marcante desse tempo, Dilma Amélia era uma visitante recorrente desse mesmo estabelecimento, superando os paradigmas machistas da época para provar que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na mesa do bar. Como ela, mulheres como Lúcia Santos e Anita Filó também não escondiam o gosto pelas sensações proporcionadas por um copo de cerveja e vez ou outra eram, Lúcia principalmente, vistas no balcão do bar pedindo uma gelada e quebrando os tabus de seu tempo. Dilma, por sua vez, era entre as mulheres talvez a figura mais atuante no palco dos bares e botecos, ser humano de espírito livre e criativo que sempre foi.

Viúva e mãe de quatro filhos, figura conhecida da rua Manoel Dantas, onde residia, Dilma tinha alma boêmia e não se importava em quebrar as convenções ao frequentar o bar, um espaço majoritariamente masculino, e tomava suas biritas sem culpa, (botando sempre sua cerveja para esquentar um pouco antes de tomá-la porque, segundo ela, beber cerveja muito gelada fazia mal à saúde) rindo e cantando para espantar as sofrências que povoam a vida.

 

Novos ares

 

Com a construção da praça Valdemar Marinho e do Parque do Juazeiro entre 2006 e 2007, novos ambientes de lazer, mais amplos e arejados pela brisa do leste seridoense surgiram para servir de opções para a juventude e a população em geral. Foi então que os quiosques ganharam a cena e a preferência das novas gerações, que curtiam mais os shows musicais e jogos de futebol ao vivo nos telões proporcionados pelos donos dos quiosques. Com isso, os bares do centro foram perdendo espaço, até chegar ao ponto de alguns deles fecharem as portas. E junto com o silêncio de cada bar que fechava, a praça Joaquim Marinho também foi se calando conforme seu movimento diminuía, e pouco a pouco também foi perdendo seu brilho noturno. Não é exagero dizer que os bares que outrora a circundavam davam vida à praça Joaquim Marinho e nesse caso o inverso também corresponde à realidade.

Há, é claro, aqueles que representam a resistência e continuam abertos em pleno funcionamento, prontos para conquistar as novas gerações ou atender ao saudosista que porventura prefira algo mais raiz e ligado às origens que remetam à sua própria juventude. Os que fecharam ou se transformaram em novos estabelecimentos comerciais continuam existindo vivos e alegres na memória de quem um dia os frequentou, guardando consigo momentos e emoções alheias, convidando talvez a um último gole para “brindar em homenagem àqueles que já não vem mais” como dizem os versos da mesma canção de Gonzaguinha e cimentando saudades nas velhas fachadas.

 

Um comentário:

  1. Os bares da praça realmente avivavam aquele lugar ... saudades daqueles tempos.

    ResponderExcluir