segunda-feira, 30 de maio de 2022

HISTÓRIAS DE CHARANGA

 


Os irmãos Alírio e Emidão, integrantes clássicos da charanga 


Por Epitácio Germano


Batucada aqui, batucada lá! Reco-reco para rasgar o silêncio da madrugada e um suave toque de triângulo para afinar o som do coletivo que aguarda com ansiedade a pancada seca do surdo para descer o primeiro gole de cachaça. Era assim que acontecia a mistura de ritmos durante os anos 80. Tudo artesanal e sem nenhum recurso eletrônico.

A farra juvenil tinha tom clássico à época, mas concentrava nas vozes desafinadas e roucas, a energia de uma geração de pessoas regida ao batuque reproduzido pela formação de pequenas charangas – como a memorável charanga dos filhos de Maria Eliza da Fazenda Umburana, município de Várzea. Além de tradição, o rito era responsável por puxar a diversão da mocidade e, rompia socialmente naquele período, muitos olhares do comportamento conservador, especialmente, quem contrariamente não concordava com as algazarras musicais.

O surgimento da charanga veio depois de uma viagem feita por Arílio, um dos filhos de Maria Eliza, até a cidade de São Paulo no final da década de 70. Na oportunidade de se debruçar sobre novas terras e viver outras experiências, um sonho antigo de animar o ambiente tranquilo da Fazenda Umburana fez acontecer a aquisição dos três primeiros instrumentos que formariam a charanga: reco-reco, pandeiro e um tamborim. Com o retorno à Paraíba, logo surgiram outros itens; triângulo e um surdo fabricado artesanalmente por Paulo de Joca Tião, que detinha da arte da marcenaria, e logo cuidou de fabricar o instrumento para depois selar o batuque, estendido por couro de bode. 

A primeira formação do grupo reuniu Genival de Laurindo, Nego Abraão, Mucambo, Nego Gentil, Queixo de Pau, Caúa, Elusaí e os três irmãos Alírio, Emidão e Tadeu. Com o som da charanga ecoando sobre o solo varzeense, naturalmente, os instrumentos passaram a se revezar nas mãos de outros amigos como Sebastião de Bela, Braz de Assis Pedra D’Água, Jorge de Toinha e tantos outros que compartilharam felicidade reproduzindo melodia.

Os batuques que todo esse roteiro de alegria protagonizado pela charanga fez com a aquisição e fabricação dos primeiros instrumentos quebrou não somente o silêncio da Fazenda Umburana, mas agitou o carnaval de 1981 com apresentações pelas ruas e bares da cidade, contagiando a juventude daquele período. Outros pontos com parada obrigatória para o aperitivo de cachaça ficavam concentrados em Zé de Jovi, Anita de Neguim, João de Jacó e Geraldo Duz.

O sucesso da charanga nesse período foi tanto que os momentos de algazarras proporcionaram grandes encontros festivos além dos limites do território local, com programações na cidade de Santa Luzia e no Distrito da Palma, localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte.

 

Eleições de 1982

 

Com a música em ascensão e fazendo parte do calendário festivo da cidade, a charanga também ganhou espaço nas eleições gerais de 82, sendo a responsável pelo embalo da reprodução de ritmos na histórica campanha do então candidato do MDB, Manoel Batista de Morais (Babá) eleito com 55,56% dos votos válidos.

Como retribuição aos festivos comícios de campanha que foram embalados pela charanga, ao assumir a Prefeitura, Manoel Batista de Morais, que também era músico e mantinha grande admiração pelo meio musical, atendeu ao único pedido feito pelos integrantes da charanga e fundou a Banda Filarmônica Abel Coelho da Silva.

Formação da filarmônica Abel Coelho nos anos 80


A nomeação de Abel Coelho da Silva a formação da Filarmônica Municipal foi uma homenagem à família da esposa dele, Severina Marinho, mãe de Newton Coelho (nome forte da política santa-luziense) e irmã de Manoel Marinho, pai dos integrantes responsáveis pela criação da charanga.  A homenagem também considerou o fato de Abel Coelho da Silva ter sido interventor da cidade entre meados dos anos 60. 

Antes de se apresentar em público na cidade, a primeira formação da Filarmônica Abel Coelho da Silva ensaiou desfile no terreiro da Fazenda Umburana, sendo os músicos transportados em um ônibus até o local. O momento também ficou marcado como uma homenagem à família de Manoel Marinho e Maria Eliza.

 

A fuga da polícia e a apreensão dos instrumentos

 

Ainda pelos idos dos anos 70, para fugir das denúncias feitas ao longo da noite por causa dos batuques, a apresentação da charanga muitas vezes era interrompida pela ordem da polícia. Naquele período, as luzes da cidade geradas pelo antigo gerador movido a óleo, era mantidas acesas até às 22 horas. Depois desse horário, qualquer movimentação passava a ser suspeita. Em um dos episódios mais cômicos, o delegado orientou os animados jovens da charanga a seguirem o show longe das casas da cidade, de preferência na saída para a estrada que dava acesso ao Rio Grande do Norte. Para evitar o barulho dentro do perímetro urbano, a animação da charanga pulou a parede do cemitério, que àquela época ficava localizado em uma área ainda relativamente distante das ruas da cidade, deixando o registro para a história, de uma apresentação feita para defuntos. Naquela noite ninguém denunciou a charanga por perturbação ao sossego alheio...

Em outro caso mais recente, já pelos anos 80, parte dos instrumentos da charanga chegou a ser retido pela polícia militar depois de uma denúncia de que a algazarra dos jovens estava sendo concentrada próximo à Maternidade Maria Balbina da Conceição, que ficava localizada entre as Ruas Anízio Marinho e Izabel Leopoldina. De fato concreto, a festança acontecia na saída da cidade, próximo ao sítio de Verinaldo - mesmo assim, a ação da denúncia terminou com Jorge de Toinha, um dos integrantes preso e os demais que participavam do momento escapando no bagageiro da bicicleta de Dãe, que cobrava frete para deixar cada um dos amigos em casa.

A apreensão de parte dos instrumentos nesse caso aprisionou também a alegria dos demais integrantes, que conseguiram somente dois dias depois do fato, soltar Jorge de Toinha após o delegado não encontrar nenhum motivo para mantê-lo detido. Quanto aos instrumentos, a liberação só ocorreu por motivo de ordem do prefeito Mário Primo de Araújo, Marão.

Com a charanga longe das grades e nenhum dos seus integrantes preso, a música novamente  ganhou liberdade e com direito a desfile de caminhonete pelas ruas da cidade patrocinado por Marão, em um dia que terminou com o canto da composição de Chacrinha “as águas vão rolar… se a polícia por isso me prender… Mas na última hora me soltar, eu pego a saca, saca, saca-rolha, ninguém me agarra..”  sendo essa uma das últimas histórias de charanga.



8 comentários:

  1. Maravilhosa recordação, era apenas a juventude querendo se afirmar. Bom que o saldo foi positivo, com uma linda orquestra que espero se perpetuar pelas novas gerações.

    ResponderExcluir
  2. Simplesmente incrivel! Já tava com saudade dos textos daqui.

    ResponderExcluir
  3. Belíssima história, muito bom saber dos acontecimentos históricos da nossa cidade.

    ResponderExcluir
  4. Quanta riqueza de detalhes nas informações trazidas. É um quase voltar no tempo.

    ResponderExcluir
  5. Várzea, celeiro de grandes músicos e artistas. Esse texto é uma viagem no tempo! Parabéns!!

    ResponderExcluir
  6. Impresionante como esse texto consegue transporta para outra epoca. Muito bom.

    ResponderExcluir
  7. Eita como é bom acordar e ler uma maravilha dessas! Voltei no tempo agora. Lembro demais das resenhas dos meninos de Maria elisa e do início da banda. Essa historia do cemiterio é verdadeira mesmo viu kkk

    ResponderExcluir
  8. Lendo essa história aí a gente vê como Dae era esperto, fazia frete na bicicleta! A historia de Várzea é comprida mesmo, viu kkk

    ResponderExcluir