quinta-feira, 1 de maio de 2025

DOUTORES DA TERRA (parte I)

 

Por Rafael Medeiros


O termo “doutor”, vocábulo da língua portuguesa amplamente utilizado, seja em ambientes acadêmicos, seja em situações cotidianas que transpareçam respeito ou hierarquia social, tem sua origem no latim, antiga língua indo-europeia que deu origem à língua portuguesa e era falada no Lácio, região que circundava a cidade de Roma. Etimologicamente a expressão “doutor” tem suas raízes na palavra latina “doctor”, cujo significado remete ao ofício de professor ou mestre, pertencendo, portanto, a família do verbo “docere”, cuja tradução é ensinar. Assim, tomando o pressuposto etimológico, um doutor é aquele que domina certo conhecimento ou arte do saber e o ensina, atuando em uma área específica com maestria, transmitindo o conhecimento e/ou compartilhando o saber para as gerações posteriores.

Nesse contexto, são doutores aqueles que reconhecidamente dominam a arte de um saber muito além da titulação acadêmica que porventura possuam. Em Várzea, doutor se refere aquelas pessoas que, de uma forma ou de outra, se destacaram nos seus meios e/ou contribuíram dentro de sua esfera de ação para o desenvolvimento de sua comunidade e o progresso de sua gente.

Os "doutores da terra" no município de Várzea são, dessa forma, personagens profundamente importantes em uma comunidade de pessoas simples e  humildes, cujas mãos estão acostumadas ao trato com a terra, mas cujas mentes abrigam uma inteligência magistral, característica, aliás, bastante peculiar entre a população do município. São indivíduos que, mesmo sem diplomas acadêmicos, de alguma forma deixaram uma marca importante em sua região.

Esses doutores da terra sempre desempenharam e continuam a desempenhar um papel vital no fortalecimento da comunidade varzeense. São os conselheiros naturais, os mediadores de disputas e os pilares de apoio para aqueles que necessitam de orientação na vida rural. Suas histórias e ensinamentos são passados de geração em geração, preservando a riqueza da tradição local.

A cidade deve muito de seu desenvolvimento a esses "doutores da terra". São eles que transformam uma terra comum em um solo fértil, um simples campo em um celeiro de oportunidades. Seu legado é um testemunho vivo de que a verdadeira sabedoria pode ser encontrada nas lições da natureza e nas mentes daqueles que a respeitam e cuidam com paixão e inteligência, além, é claro, da valorização do conhecimento e da educação como pilares fundamentais para a sustentação do equilíbrio entre o saber teórico e a inteligência prática.


A mão  da medicina no campo



Estamos em 2006. Passa das quatro da tarde e, para quem habita o sítio Trapiá, já está chegando a hora de arrebanhar os animais para encerrar a luta de mais um dia. Pouco a pouco o sol já vai esfriando e, em desmaio de cor, vai pincelando o poente do amarelo mostarda que comumente anuncia os princípios de fim de tarde no sertão. O espetáculo da natureza é gratuito e belo, convidativo ao olhar de quem por ali se encontra, caso de Seu Ernani de Antônio Emídio. Mas ele infelizmente não pode se concentrar no amarelo poético do céu poente, pois lhe chama mais a atenção o amarelo claro do pelo de sua vaquinha Mansinha que contrasta com o verde acinzentado do velho pereiro debaixo do qual se encontra caída, esmorecida e morrinhenta desde o começo da tarde. Acometida de infecção uterina após um parto difícil e doloroso no qual perdeu seu bezerrinho, Mansinha parece entregue ao próprio sofrimento, arquejando penosamente, deitada na sombra da própria solidão e totalmente sem forças para levantar. 

Seu Ernani sente-se impotente, já tentou de tudo, já quis levantá-la, lhe dar alimento, mas nada resolve e, não sabendo mais como ajudar a sua boa vaquinha leiteira, resta assistir ao seu fim agonizante e lento. Porém, uma fagulha de esperança lhe ressurge ao lembrar que por aquelas horas, a cerca de 10 quilômetros dali, no sítio Serrote Branco, Seu Chico Babado deve estar em casa. Seu Chico Babado, como é conhecido o senhor Francisco Assis de Medeiros, não é veterinário, não de profissão, mas carrega em si a vocação quase inata de salvar as vidas e ajudar os rebanhos de sua terra. Seu Ernani então, chama o filho Jerry e pede que ele pegue a moto e vá o mais rápido que pode ao sítio Serrote Branco em busca do auxílio desejado. 

Jerry assim o faz. Partida dada, primeira acionada e logo a moto desaparece na estrada de barro para em menos de 15 minutos, alcançar e transpassar a porteira de ferro da casa de Seu Chico Babado. Lá está o homem, um senhor que habita a casa de seus 60 anos, fala mansa e português eloquente, olhos azuis e cabelos grisalhos que anunciam sua experiência de vida vivida. Está encerrando sua própria luta, arrebanhando seus próprios animais e se preparando para descansar, quem sabe dar um cochilo de rede na casa onde hoje vive sozinho. Recebe Jerry cordial e educadamente, ouve a situação e não hesita: para logo o que está fazendo, entra em casa, lança mão de alguns frascos e seringas de sua improvisada farmácia veterinária e monta na garupa da moto com seu jeito singular: uma mão segurando a caixa de isopor em seu colo com os instrumentos necessários enquanto a outra dá o equilíbrio na moto pousada na própria cintura com o cotovelo dobrado em um ângulo de 90 graus. Ao chegar ao sítio Trapiá, Seu Chico já sabe de cor o que fazer: aplica o medicamento de partomicina em Mansinha e explica a Seu Ernani do que se trata. Diz que no dia seguinte o mesmo procedimento deverá ser realizado enquanto a vaca deve seguir em observação. 

Em menos de duas horas, antes das seis da noite, Mansinha, quase que milagrosamente se levanta, ânimo renovado e semblante muito mais saudável. No dia seguinte, Seu Chico faz nova visita, repete a aplicação e a vaca restitui as forças. Seu Ernani não cabe em si de agradecimento. Mansinha viverá pelo menos mais 5 ou 6 anos na propriedade gozando de plena saúde. Seu Chico Babado fica evidentemente feliz pelo êxito do seu trabalho, no entanto, como já é um costume que o acompanha, não cobra 1 centavo pelo serviço realizado.




12 anos antes, em 1994, no sítio Caiçaras, Figueiredo de Chicó Soares desesperava-se ante uma situação incomum: nada menos do que 14 reses do rebanho que cuidava, sendo algumas cabeças de sua propriedade e a maioria de propriedade de seu pai, adoeciam ao mesmo tempo, vitimadas pela terrível febre aftosa que assolava os rebanhos bovinos naquele ano pelo Brasil inteiro, quando o país registrou mais de 2000 focos muito em decorrência do plano econômico do governo de 1990, quando o pico inflacionário fez com que o bovino comercializado em leilões virasse moeda e a partir disso, a aglomeração de animais de diferentes procedências favorecesse o contágio da doença.

O próprio Figueiredo meio que disgnosticou o quadro quando começou a perceber os sintomas cada vez mais evidentes no seu gado: as reses esmorecidas, o aparecimento de ulcerações altamente dolorosas nas bocas dos animais que os impedia de se alimentarem. A experiência de observação de criador, somada às informações jornalísticas recebidas pelo rádio acerca do surto de febre aftosa no país não deixavam dúvidas de que algo urgente precisava ser feito ou ele perderia grande parte de seu rebanho.

 Foi esse quadro que o fez logo mandar chamar Chico Babado, o qual, como amigo pessoal de muitos anos, não pensou duas vezes antes de lançar mão de seus equipamentos para montar em sua bicicletinha Monark e rumar ao sítio Caiçaras. Naquele tempo, depois de viúvo e pai solo (sua esposa e mãe de sua numerosa prole de 9 filhos, Dona Margarida Brito de Medeiros, havia falecido em 1984) ele vivia ainda com dois dos filhos mais novos, Jota e Raniele, pois os outros já haviam se casado ou tomado outros rumos pela estrada da vida. Foi assim que naquela manhã ele deixou Jota e Raniele no comando da casa e pedalou em direção à nova missão que lhe era dada, avistando cada vez mais perto a Serra da Cozinha, a qual parecia abraçar amistosamente as cercanias do sítio Caiçaras.

E era assim que ele comumente fazia em seu ofício quase diário de veterinário não formado na universidade, mas vocacionado pela esperança e conduzido pelo empirismo do trabalho. Fosse desafiando a força das chuvas ou a escuridão da madrugada, fosse transformando as veredinhas brancas em atalhos que o fizessem chegar mais rápido, Seu Chico jamais se dobrou às intempéries para correr em socorro dos animais que habitavam os currais de sua redondeza.

E naquela oportunidade não foi diferente, apesar da evidente dificuldade da empreitada. Ao chegar na propriedade de Figueiredo ele logo percebeu que a situação era demasiadamente séria e exigiria o trabalho de muitos dias. A febre aftosa é traiçoeira e letal, além disso, o fator altamente contagioso contribui para devastar mais rapidamente os rebanhos. Assim, ele logo separou as reses doentes das sãs, lançando em seguida mão dos antibióticos e anti-inflamatórios que trouxera. Auxiliado por Figueiredo, iniciou os trabalhos com toda dedicação e fé em Deus que as perdas, se houvessem, fossem mínimas. 

Foram dias e mais dias de luta, no mesmo ir e vir de sua casa, a bicicletinha vencendo os quilômetros do caminho e a melhora dos animais acontecendo a conta-gotas. Ao fim de 15 dias de trabalho árduo, as 14 reses, sem exceção, estavam salvas, e Seu Chico estava feliz e agradecido pela bem-aventurança do serviço. E quanto a Figueiredo? Bem, basta dizer que o homem estava bem endividado; não de dinheiro, pois já foi dito aqui que Chico Babado não cobrava nenhuma remuneração pelo seu trabalho, apenas pelos materiais e medicamentos utilizados. A dívida de Figueiredo era muito maior: era uma dívida de gratidão eterna, tão marcante que ainda o faz brilhar os olhos mais de 30 anos depois quando reconta essa história. Ele gosta de remeter a esse fato como algo quase heroico, um salvamento inacreditável realizado pelas mãos de um homem simples, igual a ele mesmo, sem as letras formais da academia, mas cujas obstinação e sabedoria venceram o fantasma daquela peste que espreitava silenciosa e perigosamente as porteiras dos currais Brasil a fora.



 A história de Chico Babado na medicina veterinária informal, no entanto, vai muito além dos esporádicos casos de Ernani e Figueiredo e remete aos anos setenta, quando ele trabalhou cuidando dos rebanhos de fazendeiros do município de Várzea, a exemplo de Tião Germano e Chiquinho do Mimoso. Mais precisamente em 1978 o seu talento natural de cuidar dos animais, sobretudo dos rebanhos bovinos foi descoberto por um agropecuarista muito importante e conhecido no município: Chiquinho do Juremal, cuja percepção visionária viu em Chico Babado a facilidade com ele lidava com as atividades de manejo com o gado, como vacinar as reses, auxiliar nos partos das vacas etc. E foi justamente Chiquinho quem o incentivou a fazer um curso de vacinadores na cidade vizinha de Santa Luzia. Chiquinho talvez nem tenha percebido, mas sua visão aguçada iniciava uma jornada de ricas contribuições futuras para a agropecuária varzeense; a força de seu incentivo foi tão importante naquele momento, que pode ser comparada ao labor de um joalheiro que lapida um diamante bruto e Chico Babado, autodidata e amante do conhecimento que era, aceitou prontamente o desafio. Esse curso de vacinação, ministrado no Vale do Sabugi pelos médicos veterinários Cícero Diniz e José Carlos, fazia parte do "Projeto Sertanejo" programa de ações do governo federal criado em 1976 com coparticipação regional e estadual que visava desenvolver a região do semiárido nordestino. Chico Babado realizou o curso com afinco e determinação, nutrindo tanto respeito e tanta admiração pelos mestres que o orientaram que algum tempo depois batizaria um de seus filhos com o nome de José Carlos, em homenagem ao veterinário que ministrou o curso de vacinador ao lado do santaluziense Cícero Diniz. José Carlos, o filho era justamente aquele que mais tarde seria conhecido pelo apelido de Jota e nos anos 90 ficaria com a irmã Raniele em companhia do pai.

Autodidata, Chico Babado cursou apenas o antigo "primário", como era chamada a primeira fase do ensino fundamental nos idos das décadas de 50 a 80, sendo a aprovação no Exame de Admissão para cursar o ginasial seu único diploma. Era, no entanto, amante da leitura, entusiasta das ciências naturais, políticas e econômicas. Seu conhecimento vinha do esforço diário para buscar informações nas fontes que encontrasse, fosse nos recortes de jornais e revistas que colecionava, nas bulas dos fármacos que receitava ou nas informações veiculadas pelas ondas de rádio da Voz do Brasil, que ele escutava religiosamente todas as noites quando o relógio anunciava a exatidão das 19 horas e a vinhetinha característica do programa exigia o silêncio de todos. Seu aparelho de quatro elementos, como eram chamados os rádios alimentados com quatro pilhas, era, aliás, quase um artigo de luxo em sua casa humilde, pois em uma época na qual a televisão, tampouco a eletricidade haviam chegado, o rádio desfilava como o principal veículo de notícias nos interiores do país.

No livro Vidas Secas, Graciliano Ramos construiu um emblemático personagem chamado Seu Tomás da Bolandeira, que, vivendo no sertão, se caracterizava por ser um homem culto apesar de humilde, e, pela inteligência, a boa expressão oral bem como a paixão pela leitura, detinha a admiração de todos, inclusive de Fabiano, personagem principal da obra. Pode-se dizer que Chico Babado era uma espécie de Seu Tomás da Bolandeira à varzeense, pois o mundo da palavra escrita, a sede de conhecimento e a erudição na fala sempre foram paixões e/ou hábitos cultivados por ele, fato reforçado pelo hábito de dedicar duas horas por dia, geralmente após o horário de janta, para atualizar suas leituras e pesquisas, por mais que essas fossem alumiadas apenas pelo pálido brilho das lamparinas a querosene.



O legado de Chico Babado para a história do município de Várzea é extenso. Quem o conheceu, certamente vai lembrar dele como um homem de fala mansa e eloquente, profundamente dedicado ao trabalho e ao desenvolvimento agropecuário de sua terra. Ele foi, no município de Várzea, uma espécie de plano de saúde veterinário para o pequeno criador, pois nunca se furtou de ajudar ninguém, fosse organizando as campanhas de vacinação dos rebanhos, fosse cuidando dos animais doentes. Sua bicicleta provavelmente passou pelas estradas de todas as comunidades rurais do município e o seu modo abnegado de cuidar da vida animal muito certamente se fez uma prática presente além de todas as porteiras varzeenses.

terça-feira, 9 de maio de 2023

HISTÓRIAS DE BOLEIA: MOTORISTAS DE ÉPOCA

Por Epitácio Germano e Rafael Medeiros

Olhar atencioso ao horizonte protegido pelo para-brisa e sobre a estrada apenas o som de pneus quebrando os cascalhos em direção ao próximo destino. Viajar ao passado é recordar a história de muitos, especialmente dos motoristas de época, como Edmundo, Valdir Ramalho etc, profissionais que atuaram como condutores da vida manobrando veículos em um tempo em que se exigia maior atividade manual para o trabalho.  Foram esses que testemunharam a própria história de desenvolvimento da indústria automotiva do país na transição dos dois últimos séculos, e inauguraram ainda, os novos tempos na ocupação de espaços em empresas, repartições públicas e como profissionais exercendo também compromissos particulares, sendo sempre referenciados pela experiência de estrada.

O chofer social por vocação

Imaginar a existência de um cenário rodoviário com trânsito intenso, muitos veículos e competitivo, como é comum nos grandes centros urbanos de hoje, porém no início dos anos de 1960, no interior do Nordeste, é algo distante do desenho geográfico que a própria região característica por suas veredas permitia aquela época. A geração deste período era testemunha sobrevivente do fim da Segunda Guerra Mundial, e pouco saberia que pouco depois também acompanharia um dos períodos mais sombrios da história brasileira, com a tomada do poder político através de golpe militar.

A influência de todos esses acontecimentos era tamanha, que o exercício brasileiro acabou se transformando em um modelo de ensino e formação para os jovens que buscavam alguma oportunidade. O desejo não era combater, mas ser combatente contra a própria dificuldade do período e ser contemplado com mão de obra qualificada. Foi neste ambiente de formação que muitos conseguiram o acesso ao conhecimento para o exercício profissional, e depois da dispensa, caminharam por outros caminhos e tentaram, como bom sertanejo, o espaço para escrita da própria história. 

Chico de Simão, assim como muitos varzeenses foi soldado e serviu ao Exército Brasileiro, mas depois da dispensa, passou a ser um servidor da construção social em sua origem. Sua vocação como motorista era algo pragmático a própria paixão por veículos, e sua passagem na estância militar rendeu-lhe o mérito para atuar como condutor profissional. 


O retorno da base militar de Mossoró, município localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte, garantiu na bagagem de Chico Simão a experiência de dirigir caminhões, e ao regressar ao seu sublime torrão, logo foi fichado como motorista da antiga Mina da Quixaba. A economia nesta época era garimpada pelo considerável valor da xelita, e sua missão era o transporte de dinamites, em uma viagem de mais de duzentos quilômetros entre Currais Novos e os antigos galpões da Quixaba. Neste período, o controle do tempo de viagem era assinado por Bastinho Soares, que marcada o horário de saída e chegada do caminhão para analisar se algo supostamente poderia ter acontecido, em caso de atraso.


Aero Willys: o clássico dos anos 60

Ainda no fim da década de 60, Chico de Simão realizou o sonho de comprar o seu primeiro veículo. Recém-casado, e com o apoio de seus pais, a venda do rebanho bovino criado no Sítio Trapiá lhe garantiu a aquisição, à época, do modelo Aero Willys, clássico veículo fabricado pela famosa Willys Overland.

Com o primeiro carro na garagem, o motorista de experiência militar e responsável pelo transporte de cargas dinamites, passa a realizar viagens domésticas e atender pedidos particulares.


De tratorista a chofer social: o motorista de muitas gerações

Após trabalhar por vários anos como funcionário na Mina da Quixaba, o desafio seguinte de Chico de Simão foi assumir a função de tratorista do Município. O veículo havia sido adquirido pela gestão do prefeito Mário Primo de Araújo, com a visão de alavancar o trabalho de assistência ao homem do campo. O intuito de gerar o desenvolvimento com alguém conhecedor da própria realidade, associado a necessidade de um motorista experiente, garantiu uma nova trajetória ao transportador das dinamites de xelita, agora como servidor público, missão exercida ao longo de mais de trinta anos, até conquistar sua aposentadoria em uma profissão escolhida pelo próprio ofício de vocação. Do preparo do solo no campo, sua missão como servidor ainda incluiu a condução do caminhão da coleta de resíduos, e tempos depois, a responsabilidade do transporte de estudantes na rede municipal de ensino.

O perfil de dedicação ao expediente público e competência ao cargo investido fez de Chico Simão um dos poucos condutores que conseguiu travessia em todas as gestões públicas da história política da cidade, assim como autonomia para condução aos primeiros veículos e máquinas registrados no município. 

Além do Aero Willys, Chico de Simão foi proprietário de carros como Jeep e, por último, um modelo Pálio, fabricado pela italiana Fiat, de cor verde cintilante. Sua dedicação à estrada, assim como aconteceu a vida social e familiar, ficou marcada pela educação como tratava a todos. Olhar sereno, atencioso e sempre prudente a cada quilômetro. Um motorista que tinha braços firmes ao volante e que transportou, ao longo de décadas, mais que o conceito de contribuinte ao desenvolvimento de seu próprio lugar, os sonhos e a realização de muitos de chegar com segurança ao destino. Um chofer social por vocação, e mais que isso, digno da própria profissão é que inspirou outros condutores.

O amante dos tratores e aceleradores

Para quem conheceu nunca foi surpresa que Nego Basto era um amante inveterado do acelerador. Por isso, muitas das viagens com ele ao volante eram, digamos, mais recheadas de emoção. Nascido em Jardim do Seridó, no vizinho estado do Rio Grande do Norte, Basto radicou-se no município de Várzea desde sua juventude, onde fez amigos, jogou futebol nos times amadores da cidade, frequentou os forrós das comunidades rurais, casou e formou família. 

Em 1977, juntamente com outros motoristas da região como Vamilton Vieira, Basto realizou o que não seria exagero chamarmos de a universidade que marcaria sua vida: o curso de tratorista promovido na cidade de Bananeiras, no brejo paraibano. Era a sua oportunidade de se profissionalizar, especializar-se no ramo que sempre demonstrou habilidade e prazer para realizar - a aragem de terras.

Requisitado por praticamente todos os produtores da região varzeense, Basto destacava-se pela disposição para o trabalho, pela coragem para enfrentar os desafios das terras mais difíceis de serem cortadas. Quem presenciou sempre contou que Basto chegava a se divertir quando pegava terras muito úmidas e o trator chegava a atolar, pois ele encarava isso como uma oportunidade para demonstrar suas habilidades de tratorista.

Como motorista da Prefeitura Municipal, começou a trabalhar no ano de 1993, depois de trabalhar com o médico Otoni Medeiros na campanha a prefeito em 1992, que o contratou por ele conhecer toda a região rural de Várzea, tornando-se, portanto, o motorista de confiança do chefe do executivo.

Com a saída de Otoni da prefeitura, nos governos seguintes ele continuou trabalhando a serviço do município e dirigia praticamente todos os veículos oficiais, o que incluía caçamba, caminhonete, F- 4000, ambulância, o famoso Elba vermelho adquirido pela prefeitura no início dos anos 90 etc, mas nunca escondeu de ninguém que sua paixão sobre rodas sempre foram os tratores.

Quanto a fama de pé embaixo que sempre teve como motorista, não se conhece ao certo quando foi construída, mas até onde se sabe é verídica, sobretudo quando dirigia os carros de passeio da prefeitura: se o passageiro falasse que estava apressado, o veículo automaticamente fazia o velocímetro vibrar rumo ao seu máximo.

Acasos, casos acidentes e incidentes

Na condução dos veículos, fossem de passeio ou de trabalho, Basto se deparou com muitas circunstâncias que só a estrada proporciona, como da vez em que, dirigindo pela região do brejo, deu carona na carroceria de sua caminhonete a um grupo estudantes desconhecidos que vibravam com suas manobras arrojadas e seu pé firme no acelerador. 

De outra vez, quando trabalhava dirigindo a caminhonete C10 de Pedro Hermógenes, vinha da zona rural com uma carrada de capim daquelas caprichadas que lotam todo o espaço da carroceria. Com ele, o próprio Pedro Hermógenes e o pedreiro Ronaldo de Luiz de Romana dividiam a boleia, além de Inácio Pedro, conhecido na cidade como Inácio Bocão, que vinha de carona se ajeitando como dava na carroceria cheia de capim e ainda dividindo espaço com um tambor cheio de leite. Acontece que em uma das curvas da estrada, como era de costume, Basto não aliviou o pé no acelerador, e o tambor de leite rolou com força para fora do carro por mais que Inácio Pedro tentasse evitar. Ao ver o tambor tombar para fora da estrada com estardalhaço, Basto pisou firme no freio e parou a caminhonete morrendo de gargalhar com a situação: "Eita que desta vez o tambor caiu pra fora!". Mas logo teria ficado muito sério e preocupado quando Ronaldo redarguiu fazendo a seguinte observação: "Então, o problema é que Inácio caiu também..." Felizmente tudo não havia passado de um susto sem maiores complicações e a viagem pôde prosseguir em paz até a cidade.


Tacografando histórias com Sérgio de Lúcia de Quinca

Francisco Sérgio de Medeiros pode ser um nome comum e passar despercebido à primeira vista para algum habitante do município, mas este é apenas o nome completo de um dos motoristas mais longevos e conhecidos do serviço de transportes varzeense. Como não é na formalidade tampouco que nos documentos oficiais que são compostas as narrativas reais do povo, é por Sérgio de Lúcia de Quinca que todos vão conhecer e entender a referência de um profissional competente, cuja responsabilidade ao volante talvez seja seu maior legado. Provavelmente Sérgio já marcou todas as estradas do município com os rastros dos pneus dos tantos veículos que já dirigiu, bem como tem na própria na memória um hd imenso de histórias guardadas vivenciadas no seu trabalhoso ofício sobre quatro rodas.

Contratado pela prefeitura municipal na gestão de Babá Batista em 01 de junho de 1988, em uma época pré-Constituição na qual os concursos públicos não eram obrigatórios, Sérgio ainda muito jovem, já começava por aquele tempo a trilhar o caminho que talvez o tenha ficado mais conhecido no serviço dos transportes públicos: o transporte de estudantes. Era em uma caminhonete D20 azul escura que principiavam suas primeiras viagens, carregando os sonhos tanta gente que buscava conhecimento na capital do Sertão. Expostos às condições naturais do ambiente, era com uma lona improvisada que estudantes como Novo de Severino Canuto, Demazinho de Valdemar Marinho, Conceição de Biu Ramalho etc se protegiam da chuva; lona que Sérgio jamais esquecia de levar de carona na carroceria da D20.

Sérgio também era o motorista do ônibus que transportava as urnas eleitorais onde haviam sido depositados os sufrágios após o fim do dia das eleições. Em uma época eleitoral mais romântica, marcada pelos borrões nostálgicos das cédulas de papel, já era esperado que as apurações dos votos entrassem pela noite adentro, e essa contagem só poderia ser feita na sede do fórum eleitoral em Santa Luzia. Assim, Sérgio começava os trabalhos ainda pelo fim da tarde, passando de seção em seção e recolhendo as urnas nas quais estava literalmente impresso o destino político do município ou mesmo do estado (nesse caso em uma proporção um tanto menor). Apesar do peso dessa responsabilidade, essa era também uma oportunidade de fazer uma espécie de boca de urna pessoal, pois Sérgio percebia as aglomerações que se formavam em torno da casa do ex-prefeito João Balbina, point certo no qual as militâncias dos partidos se formavam para aguardar os resultados. Só de observar qual grupo estava mais numeroso e mais vibrante, Sérgio já podia mensurar qual lado sairia vencedor das urnas, as quais ele já conduzia no ônibus com todo o cuidado do mundo, e que, lacradas e silenciosas, iam de carona com ele selando o resultado decisivo do pleito.

Gaiatices ao volante

Viagens demoradas e cansativas marcaram a trajetória de Sérgio como motorista e chofer dos veículos municipais, mas nada que alterasse seu costumeiro senso de humor e sarcasmo típico dos Garcia varzeenses. Em uma oportunidade, fosse em finais dos anos 80 ou início dos anos 90, Sérgio recebeu do próprio prefeito Mario Pergentino a incumbência de levar algumas pessoas a um evento festivo na cidade de São Mamede. Na volta, pelo sereno sertanejo das altas horas da noite e a certa altura da estrada de barro que mais tarde viria a se tornar a PB 233, percebendo que só se encontravam acordados além dele, os pedais de freio, acelerador e embreagem (seus indeléveis companheiros de viagem) do carro de passeio que dirigia, Sérgio resolveu pregar uma peça nos seus passageiros festeiros e bem no pezinho do Alto de Maria Eliza desligou o carro e chamou jovens como Jailton Soares e Robson Ramalho, que ressonavam confortáveis e ressacados dos bons momentos vividos há pouco na festa da vizinha cidade do Vale. 

Então, sim, o motorista os fez despertarem e saírem do carro para empurrá-lo na subida da ladeira com a desculpa de que o veículo apagara o fogo, prática aliás, que segundo diziam algumas más ou muito bem-informadas línguas, Valdir Ramalho também era adepto quando tinha de carregar algum adversário no antigo jipe da prefeitura...

Naquela noite, os jovens tiveram de suar para empurrar o carro na subida enquanto Sérgio sorria por dentro de divertimento pela pegadinha e provavelmente, é claro, de satisfação por indiretamente ajudá-los a se livrar da ressaca mediante o suor e esforço físico da empreitada. Ao final da ladeira, na descida, Sérgio fingiu que o motor do carro finalmente havia pegado no tranco e todos seguiram para Várzea satisfeitos pela certeza do bom dever cumprido.

Em outra oportunidade, já pelo recente ano de 2010, ao volante do ônibus amarelinho que transportava estudantes de Várzea para Patos, Sérgio discretamente observava pelo retrovisor do ônibus alguns estudantes fazendo troça quase que diária com o jovem Dudusão de Paulo Brito em virtude de seu tamanho corporal e suas adiposidades bem como de  seus hábitos alimentares nada saudáveis: quando qualquer um deles expelia alguma flatulência mal cheirosa e isso naturalmente incomodava a todos dentro do ônibus, de forma automática alguém acusava Dudusão, que, por mais que negasse de pés juntos, seus argumentos não tinham validade em relação a inquisidora maioria de votos.

Fato é que, cansado das acusações jocosas e infundadas, Dudusão resolveu dar aos malandros uma demonstração  do que seria o produto nada inalável de uma acusação contra ele daquela natureza e que fosse verdadeira. Então, naquela noite, cujo preâmbulo ele já havia preparado em casa forrando o estômago  com raspas de queijo, ovos, vitamina de jaca e o que mais encontrasse, ao sair das aulas do curso de Administração que fazia na UEPB, ele comeu mais fastfood do que normalmente comia, pediu  para caprichar na cebola e ensebou o lanche com bastante maionese. Estava pronta a sua bomba particular de gás sulfídrico.

Com todos devidamente abancados em suas cadeiras, o ônibus avançou na rodovia rumo Várzea, com Sérgio de pé macio no acelerador e olho atento apenas à estrada. Mas não deixou de perceber pelo retrovisor Dudusão se levantar da cadeira e soltar uma silenciosa venenosíssima que irradiou pelo ônibus inteiro, cujas janelas se encontravam fechadas para se proteger do frio noturno.

Foi um escarcéu de gente xingando-o, abanando o ar para tentar se livrar do mau cheiro que já ardia nas narinas, outros que tentavam desesperadamente abrir a janela para respirar um pouco de ar mais puro.
- Quando for de autoria minha, vocês vão saber só de sentir, mas eu farei questão de assumir! - ele disse enquanto se dirigia vitorioso e sorridente para sua cadeira.

Sérgio, que até então mantivera-se calado nesses incidentes, dessa vez não teve como não se pronunciar e, tapando o nariz como podia, fosse por sarcasmo ou por necessidade, disse simplesmente:
- Deus do céu... enchi a boca dágua!

Para além das gaiatices, tiradas de humor e cordialidade jovial para com os estudantes que conduzia, os atributos que sempre caracterizaram Sérgio ao volante foram outros: a habilidade como condutor, a pontualidade para com os horários que sempre teve de cumprir e a responsabilidade de uma missão que não é das mais fáceis: a de transportar vidas humanas em segurança fizesse chuva ou fizesse sol.

E se as palavras que definem os seus atributos como motorista rimam entre si, isso aí já é improviso do destino, um destino que o escolheu e o acolheu pelas estradas da vida desde sua juventude e que segue tacografando histórias e mais histórias sobre rodas há pelo menos trinta e cinco anos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

QUANDO AS LAN HOUSES ERAM JANELAS PARA O MUNDO

 


Por Rafael Medeiros 

 

Os nascidos entre as décadas de 80 e 90 certamente vivenciaram momentos inesquecíveis que marcaram a história do mundo recente, como por exemplo, a queda do muro de Berlim em 1989, a transição de séculos/milênios entre 2000 e 2001, o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque, a seleção brasileira de futebol se consagrar campeã mundial em duas copas e, não menos importante, a passagem de bastão da era analógica para a era digital, o que alterou significativamente os hábitos e costumes de todos os inseridos nesse contexto. 

Nesse período, a popularização da internet representava o marco principal da evolução tecnológica mundial. rede mundial de computadores, surgida inicialmente como uma estratégia militar dos Estados Unidos para descentralizar os dados estratégicos das bases militares, havia tido uma grande explosão no Brasil exatamente no início dos anos 2000, porque o acesso a computadores pessoais se difundira bastante em todo o país, por mais que o acesso à internet acontecesse ainda na conexão discada.

 

Uma cidade online

 

A Várzea do início dos anos 2000 era pacata, pintada com as singelas cores de toda cidade do interior e ainda conservava os saudáveis hábitos de socialização mais antigos, como, por exemplo, o de frequentar a praça à boca da noite para, de boca em boca, colocar as conversas e fofocas em dia. Era uma forma honesta e simples de cultivar os apegos e as relações nas redes sociais da vida real.

Foi então que em junho de 2006, às vésperas do João Pedro daquele ano, o microempresário Edinildo Araújo abriu o primeiro estabelecimento da cidade com acesso à internet via rádio. O ambiente contava com algumas poucas máquinas conectadas e uma internet lentinha, mas que já se configurava como um avanço tecnológico gigante sobretudo para a juventude da época, que disputava os horários e as cadeiras do local para se conectarem com o resto do mundo. Pouco tempo depois o também microempresário Wandick Wagner decidiu transformar o seu espaço de gameroom e videolocadora que tanto sucesso fizera no final dos anos 90 em um espaço de lan house, abrindo, assim, uma saudável concorrência no serviço local de conexão via web e dando mais opções de acesso a uma massa cada vez mais aficionada pelas seduções do mundo digital.

O jornalista Rodolfo André na lan house de Edinho em registro de 2006

    Tanto a lan house de Edinho quanto a de Wandick ficavam localizadas nas intermediações da praça Joaquim Marinho, o que representava uma excelente estratégia comercial devido às mesmas situarem-se no coração da cidade, bem como simbolizava o contato entre os hábitos novos e os hábitos antigos de comunicação. As lan houses tornaram-se pontos de encontro, tanto presenciais quanto virtuais, pois os jovens que vinham passear na praça não raro davam uma passadinha em uma das lan houses para encontrar um amigo que estivesse por lá conectado e aproveitando o ensejo, dava também uma espiadinha nas suas redes sociais, sobretudo nas páginas de Orkut, que por esse período bombava no Brasil inteiro como a rede social mais acessada.

Era como se os bancos da praça disputassem com as cadeiras das lan houses os espaços para abancar as conversas do dia, mesmo que por muitas vezes as conversas face a face apenas complementassem as interações virtuais do MSN, que era o principal serviço de mensagens instantâneas da época. Assim, no ritmo agitado com que os bares de Brizola e Demar disputavamquem tocava o dvd de forró mais estourado do momento, as ruas que contornavam a praça formigavam de jovens e adolescentes que iam e voltavam das lan houses cheios de novidades para compartilharem.

Enquanto isso, pelos lados calmos da rua Izabel Leopoldina, em um espaço modesto que se localizava em frente ao orelhão do hospital municipal, um empresário santa-luziense de nome Petrônio, em negociação com o varzeense Jozenaldo Medeiros, abria um novo empreendimento no ramo das lan houses para atender melhor à demanda cada vez maior de varzeenses conectados e expandir a concorrência local para, assim, fazer frente ao monopólio dos amigos Edinho e Wandick no setor dos serviços digitais. Assim, aquele cantinho da Izabel Leopoldina tornou-se rapidamente mais um point de encontro na cidade, aquecido pelo bom humor e atendimento diferenciado dos jovens varzeenses Carmita Marinho e Jubson Dantas, que foram contratados para administrar o espaço. Cerca de um ou dois anos após a inauguração, o próprio Jozenaldo Medeiros comprou definitivamente a empresa e passou a administrá-la junto com sua esposa Eliete Medeiros. A lan house de Jozenaldo era muitas vezes chamada pelos seus frequentadores mais assíduos em tom de brincadeira de lan house de Jubson ou lan house de Carmitinha, tamanha era a identificação dos funcionários para com o local.

 

O mundo na palma da mão

 

Por um bom tempo, até meados da década de 2010, eram as lan houses que conectavam o varzeense com o universo à sua volta, estreitando as fronteiras do mundo, bem como se perfazendo como uma janela importante de conhecimento, comunicação e entretenimento. As lan houses não faziam parte apenas da paisagem da cidade, elas  passaram a habitar também o cotidiano de todos na cidade, pois, de forma direta ou indireta, pode-se dizer que cada varzeense usou os serviços de alguma delas em pelo menos uma oportunidade.  

No entanto, com a economia aquecida e o poder de compra mais acessível a partir da segunda metade da década de 2000, a população varzeense passou cada vez mais a adquirir seus próprios computadores e contratar serviços individuais de rede, o que fez com que o fluxo de clientes nas lan houses passasse gradativamente a diminuir.

Além disso, com o advento dos smartphones, as lan houses enfim perderam força em sua principal função: o acesso às redes sociais. Afinal, os aplicativos presentes nos smarts já eram um computador particular na palma da mão de cada um e com isso, não havia mais necessidade de frequentar os agora antigos espaços de socialização virtual, a não ser para serviços específicos como impressão ou coisas do gênero.

Porém, não há varzeense que não se recorde com certas doses de saudade de como era divertido pagar uma horinha em uma daquelas lan houses para fazer uma pesquisa na internet, ler as postagens e os recados que chegavam nas redes sociais, interagir em aplicativos de mensagens como MSN e skype ou mesmo encontrar os amigos que se deslocavam até elas para se comunicarem com o resto do mundo pela janela da rede mundial de computadores.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

HISTÓRIAS DE CHARANGA

 


Os irmãos Alírio e Emidão, integrantes clássicos da charanga 


Por Epitácio Germano


Batucada aqui, batucada lá! Reco-reco para rasgar o silêncio da madrugada e um suave toque de triângulo para afinar o som do coletivo que aguarda com ansiedade a pancada seca do surdo para descer o primeiro gole de cachaça. Era assim que acontecia a mistura de ritmos durante os anos 80. Tudo artesanal e sem nenhum recurso eletrônico.

A farra juvenil tinha tom clássico à época, mas concentrava nas vozes desafinadas e roucas, a energia de uma geração de pessoas regida ao batuque reproduzido pela formação de pequenas charangas – como a memorável charanga dos filhos de Maria Eliza da Fazenda Umburana, município de Várzea. Além de tradição, o rito era responsável por puxar a diversão da mocidade e, rompia socialmente naquele período, muitos olhares do comportamento conservador, especialmente, quem contrariamente não concordava com as algazarras musicais.

O surgimento da charanga veio depois de uma viagem feita por Arílio, um dos filhos de Maria Eliza, até a cidade de São Paulo no final da década de 70. Na oportunidade de se debruçar sobre novas terras e viver outras experiências, um sonho antigo de animar o ambiente tranquilo da Fazenda Umburana fez acontecer a aquisição dos três primeiros instrumentos que formariam a charanga: reco-reco, pandeiro e um tamborim. Com o retorno à Paraíba, logo surgiram outros itens; triângulo e um surdo fabricado artesanalmente por Paulo de Joca Tião, que detinha da arte da marcenaria, e logo cuidou de fabricar o instrumento para depois selar o batuque, estendido por couro de bode. 

A primeira formação do grupo reuniu Genival de Laurindo, Nego Abraão, Mucambo, Nego Gentil, Queixo de Pau, Caúa, Elusaí e os três irmãos Alírio, Emidão e Tadeu. Com o som da charanga ecoando sobre o solo varzeense, naturalmente, os instrumentos passaram a se revezar nas mãos de outros amigos como Sebastião de Bela, Braz de Assis Pedra D’Água, Jorge de Toinha e tantos outros que compartilharam felicidade reproduzindo melodia.

Os batuques que todo esse roteiro de alegria protagonizado pela charanga fez com a aquisição e fabricação dos primeiros instrumentos quebrou não somente o silêncio da Fazenda Umburana, mas agitou o carnaval de 1981 com apresentações pelas ruas e bares da cidade, contagiando a juventude daquele período. Outros pontos com parada obrigatória para o aperitivo de cachaça ficavam concentrados em Zé de Jovi, Anita de Neguim, João de Jacó e Geraldo Duz.

O sucesso da charanga nesse período foi tanto que os momentos de algazarras proporcionaram grandes encontros festivos além dos limites do território local, com programações na cidade de Santa Luzia e no Distrito da Palma, localizado no vizinho estado do Rio Grande do Norte.

 

Eleições de 1982

 

Com a música em ascensão e fazendo parte do calendário festivo da cidade, a charanga também ganhou espaço nas eleições gerais de 82, sendo a responsável pelo embalo da reprodução de ritmos na histórica campanha do então candidato do MDB, Manoel Batista de Morais (Babá) eleito com 55,56% dos votos válidos.

Como retribuição aos festivos comícios de campanha que foram embalados pela charanga, ao assumir a Prefeitura, Manoel Batista de Morais, que também era músico e mantinha grande admiração pelo meio musical, atendeu ao único pedido feito pelos integrantes da charanga e fundou a Banda Filarmônica Abel Coelho da Silva.

Formação da filarmônica Abel Coelho nos anos 80


A nomeação de Abel Coelho da Silva a formação da Filarmônica Municipal foi uma homenagem à família da esposa dele, Severina Marinho, mãe de Newton Coelho (nome forte da política santa-luziense) e irmã de Manoel Marinho, pai dos integrantes responsáveis pela criação da charanga.  A homenagem também considerou o fato de Abel Coelho da Silva ter sido interventor da cidade entre meados dos anos 60. 

Antes de se apresentar em público na cidade, a primeira formação da Filarmônica Abel Coelho da Silva ensaiou desfile no terreiro da Fazenda Umburana, sendo os músicos transportados em um ônibus até o local. O momento também ficou marcado como uma homenagem à família de Manoel Marinho e Maria Eliza.

 

A fuga da polícia e a apreensão dos instrumentos

 

Ainda pelos idos dos anos 70, para fugir das denúncias feitas ao longo da noite por causa dos batuques, a apresentação da charanga muitas vezes era interrompida pela ordem da polícia. Naquele período, as luzes da cidade geradas pelo antigo gerador movido a óleo, era mantidas acesas até às 22 horas. Depois desse horário, qualquer movimentação passava a ser suspeita. Em um dos episódios mais cômicos, o delegado orientou os animados jovens da charanga a seguirem o show longe das casas da cidade, de preferência na saída para a estrada que dava acesso ao Rio Grande do Norte. Para evitar o barulho dentro do perímetro urbano, a animação da charanga pulou a parede do cemitério, que àquela época ficava localizado em uma área ainda relativamente distante das ruas da cidade, deixando o registro para a história, de uma apresentação feita para defuntos. Naquela noite ninguém denunciou a charanga por perturbação ao sossego alheio...

Em outro caso mais recente, já pelos anos 80, parte dos instrumentos da charanga chegou a ser retido pela polícia militar depois de uma denúncia de que a algazarra dos jovens estava sendo concentrada próximo à Maternidade Maria Balbina da Conceição, que ficava localizada entre as Ruas Anízio Marinho e Izabel Leopoldina. De fato concreto, a festança acontecia na saída da cidade, próximo ao sítio de Verinaldo - mesmo assim, a ação da denúncia terminou com Jorge de Toinha, um dos integrantes preso e os demais que participavam do momento escapando no bagageiro da bicicleta de Dãe, que cobrava frete para deixar cada um dos amigos em casa.

A apreensão de parte dos instrumentos nesse caso aprisionou também a alegria dos demais integrantes, que conseguiram somente dois dias depois do fato, soltar Jorge de Toinha após o delegado não encontrar nenhum motivo para mantê-lo detido. Quanto aos instrumentos, a liberação só ocorreu por motivo de ordem do prefeito Mário Primo de Araújo, Marão.

Com a charanga longe das grades e nenhum dos seus integrantes preso, a música novamente  ganhou liberdade e com direito a desfile de caminhonete pelas ruas da cidade patrocinado por Marão, em um dia que terminou com o canto da composição de Chacrinha “as águas vão rolar… se a polícia por isso me prender… Mas na última hora me soltar, eu pego a saca, saca, saca-rolha, ninguém me agarra..”  sendo essa uma das últimas histórias de charanga.



sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

VELHAS NOITES DE ANO NOVO


Noite de ano de 2008. Arquivo: Ricardo Souza


Por Rafael 
Medeiros


Por muito tempo, sobretudo antes de 1984, quando o João Pedro de Várzea surgiu como um grande evento, as noites de ano, como eram chamados os réveillons pela população varzeense, se notabilizavam como a principal festividade do ano no município.

O costume de juntar as famílias para festejar em harmonia brindando ao novo ano que se iniciava era uma tradição celebrada por todos na cidade, principalmente aqueles mais religiosos, que frequentavam as missas de fim de ano e, a fim de confraternizar entre familiares e amigos da comunidade, já tinham o hábito de reservar previamente suas mesas, as quais geralmente eram organizadas nas intermediações da Igreja de São Francisco.

Feriado de confraternização universal, o dia 1º de janeiro tem o poder especial de proporcionar sensações de recomeço a cada habitante do planeta, de virar páginas além das folhinhas do calendário gregoriano e de reinventar sonhos humanos na virada do ano. Para o varzeense, além da renovação dos planos para o ano novo, a passagem de ano também significou sempre uma oportunidade social de rever velhos conhecidos das comunidades rurais do município, reencontrar familiares e amigos que vinham de outros lugares visitar a terrinha.

 E assim as festas de noite de ano foram acontecendo e se remodelando com o tempo, ganhando novas roupagens com a alegria de quem estreia o figurino que usará no réveillon, configurando-se, portanto, como um dos mais importantes eventos para se colecionar novas histórias e ensaiar velhas saudades.

 

Quando as luzes se apagavam

 

            Pelos idos da década de 1950, o então distrito de Sabugirana, pertencente à cidade de Santa Luzia, encontrava-se ainda nos primeiros passos do seu processo de urbanização. Dessa forma, os ritos e festividades de passagem de ano resumiam-se à missa que era rezada em homenagem ao novo ano; o padre piancoense Milton Arruda de Alencar, disciplinado e polido nos gestos, rezava toda a missa em latim, como mandava a tradição católica de seu tempo. No entanto, utilizava o momento do sermão para se dirigir em português aos fiéis que se abancavam na pequena igreja para lhes desejar um feliz ano novo e lhes falar acerca do significado dos ciclos que inevitavelmente se renovam bem como das bem-aventuranças que permeiam todos os eventos de recomeço.

            Assim, quando o relógio da igreja anunciava pontualmente as zero horas que oficialmente iniciavam o ano vindouro, todas as luzes eram apagadas e as pessoas rezavam em agradecimento, abraçando-se comovidas pelo ritual de passagem de ano, embaladas pelo badalar dos sinos da igreja que tocavam sem parar.

Esta tradição de apagar as luzes durante a missa de ano na hora exata da meia-noite perdurou até a década de 1960, quando Padre Milton deixou a cidade de Várzea e foi substituído pelo padre holandês Johannes Cornelis Lauwen, que, vindo para o Brasil, adotara o nome de Padre Jerônimo e passara por cidades como Fortaleza, Caicó, Mossoró, São João do Sabugi e Fagundes, até finalmente radicar-se no município de Santa Luzia no dia 14 de maio de 1961. Não que Padre Jerônimo não fosse adepto da tradição de apagar as luzes quando o relógio anunciasse a passagem do ano e os sinos da igreja, alegres e solícitos, dessem as boas-vindas ao ano novo. Não. O que ocorria é que, sendo responsável pela paróquia de Santa Luzia, ele precisava celebrar as missas de ano em várias cidades do Vale do Sabugi, passando a missa de Várzea a acontecer bem mais cedo, às sete horas da noite.

 

Nos pavilhões da Antônio Urgolino

 

Após o final da missa, as pessoas tradicionalmente se dirigiam aos pavilhões que eram montados na rua Antônio Urgolino, onde se divertiam com comes e bebes esperando a hora mágica da passagem de ano, quando se confraternizariam em um ano novinho em folha e festejariam até a madrugada.

Algumas coisas que nos dias de hoje podem parecer banais eram particularmente chamativas por esses tempos, como por exemplo, a banca de Manoel Duca, onde fatias de abacaxi eram vendidas como o pedaço mais doce da festa, uma vez que a produção de abacaxis não era comum na região do Seridó e o transporte desses produtos não era uma opção comercialmente viável em virtude das escassas condições econômicas da época, aliadas às dificuldades de traslado e à pouca demanda de uma população ainda muito pequena. Assim, os abacaxis de Manoel Duca eram, nesses réveillons, um artigo raro e disputado, cujo doce cítrico tinha sabor de ano novo para os habitantes da cidade.

Essas noites de ano nos pavilhões da Antônio Urgolino eram regados com a humildade e simplicidade do povo varzeense, retrato de um período da história em que as coisas eram mais difíceis para todo mundo. Mas a alegria e sinceridade nos abraços jamais faltou para as pessoas dessa época, que demonstravam nos pequenos gestos a união de uma comunidade em formação; união que se vivificava desde os trabalhos que que se iniciavam na tarde do dia 31 de dezembro, quando os trabalhadores se juntavam para varrer a rua ainda não pavimentada, juntar os montinhos de terra e preparar um cenário limpo e agradável que mais tarde sem distinção receberia todos que viessem confraternizar.

Terreno da Antônio Urgolino sendo preparado para uma noite de ano dos anos 1960

Por esse tempo, pelos mesmos fins de tarde as pessoas já começavam a chegar de todas as comunidades rurais, gente que vinha para a missa, outros que vinham beber e encontrar os amigos na cidade, gente que vinha simplesmente se divertir na melhor festa do ano, rememorar os episódios do ano velho e dar boas vindas ao ano novo na noite iluminada da cidade. O rito da passagem de ano era profundamente significativo para os personagens que compunham o cenário dessa época, varzeenses crédulos e apegados aos valores simbólicos das pequenas coisas, como escrever em carvão na parede da casa a data do primeiro dia do ano logo pela manhã  ou inaugurar o novo calendário anual na parede depois que chegava dos festejos de noite de ano. Para cada varzeense, celebrar a festa da noite de ano era uma forma metafórica de fechar um elo com o passado e iniciar uma nova história repleta de capítulos melhores. A noite de ano era uma forma festiva de ter a certeza definitiva que o ano anterior acabava de virar memória e que saudades futuras começariam a ser escritas no dia seguinte.

 

 

1974: o ano que nunca acabou

 

No dia 31 de dezembro de 1974, a jovem Maria da Conceição Costa, conhecida como Ceicinha de Rafael Manane, acordou empolgada e alegre, um pouco ansiosa talvez. Mais tarde, naquele dia, o recém-inaugurado Clube Municipal estaria lotado e receberia os festejos de noite de ano, e Conceição havia sido escolhida a representante varzeense que brilharia no palco do mesmo em um concurso que elegeria a miss do Vale do Sabugi.

Personagens como Milton de Dedé Marinho, Bastinho Soares e a professora Raimunda Ramalho, conhecidos pela organização e gosto pelas festas, haviam preparado o grande evento de passagem de ano no Clube Municipal, na qual, entre as atrações da noite, haveria a escolha da miss do Vale e para a qual Ceicinha de Rafael ensaiava suas emoções desde que o sol se apresentou no horizonte, presenteando a cidade com a última aurora do ano.

O clima de festa tomava conta da cidade inteira e, conforme o dia passava, pouco a pouco as ruas e a jovem praça Joaquim Marinho começavam a receber os visitantes para aquela inesquecível noite de ano. Titi Macambira, dono de um caminhão que usava para transporte de pessoas, veio do sítio Cordeiro, passando por comunidades como Riacho de Fora e Caiçaras, enchendo a carroceria do veículo de gente empolgada para os festejos da noite na cidade.

Às sete horas da noite, como de costume, o padre Jerônimo Lawen, com nítida exultação e vivacidade, celebrou a última missa do ano para uma igreja lotada de fiéis. Simpático e atencioso para com a comunidade católica como lhe era peculiar, naquela noite ele se despediu de cada fiel desejando a todos um feliz 1975 e aproximadamente às oito e meia da noite, findada a missa, ele se dirigiu a Edson Cirilo, conhecido motorista santa-luziense que costumava fazer suas viagens, e, entrando no novíssimo jipe azul-xingu ano 74 teria dito: “vamos rápido, que hoje ainda temos Santa Luzia e São José para fazer!” – referindo-se à rodada de missas que celebraria naquela noite no Vale do Sabugi. Cirilo engatou a primeira e arrancou em direção a Santa Luzia, deixando para trás uma cidade vibrante e feliz que lotava alegremente a praça e o patamar da igreja aguardando a hora de se dirigir ao clube para coroar a noite de festa.

A viagem começou como qualquer outra, com padre Jerônimo contente e à vontade puxando aqui acolá algum assunto e Edson Cirilo com o pé firme no acelerador e o olhar atento à estrada de barro (hoje rodovia estadual 233) iluminada apenas pelos faróis do jipe, cuja luz arrojada contrastava com a mansidão da luz da lua que por aquelas horas já clareava o horizonte varzeense em seu terceiro dia de cheia.

No entanto depois de algumas ladeiras vencidas e cerca de três quilômetros percorridos, foi bem no fim de uma descida que aquela viagem até então tranquila seria atravessada por um destino fatal: outro jipe, vindo em sentido contrário, com certa velocidade e sobrepeso de pessoas, perdeu o controle ao tentar desviar de uma valeta que ficava no meio da estrada, invadindo a contramão e avançando contra o veículo dirigido por Edson Cirilo em que padre Jerônimo ocupava o banco de passageiro.

O então jovem motorista Edson Cirilo tentou usar de todas as habilidades que possuía para evitar a colisão frontal, girando o volante para a direita e jogando o jipe para fora da estrada, tencionando a todo custo segurar a direção a fim de evitar o acidente. No entanto não conseguiu evitar o toque do outro veículo na lateral do seu jipe, o que fez com o veículo em que estava o padre Jeronimo fosse jogado violentamente contra os morrotes de barro da beira da estrada, capotando duas vezes até finalmente parar. “Depois de capotar, o carro caiu de pé!”, relembra Edson Cirilo, que recorda perfeitamente de tudo o que aconteceu naquela fatídica noite.

Arremessado para fora do veículo, padre Jerônimo já agonizava sem murmurar mais nenhuma palavra, até falecer no meio do sertão; o mesmo sertão para o qual um dia viera da Holanda realizar sua missão vocacional, dando ali, na beira da estrada, seu último suspiro de vida, testemunhado apenas pela lua de dezembro e pelo desespero de um jovem motorista que também apresentava graves machucados.

Na estrada, o jipe que provocara o acidente havia fugido sem prestar socorro e Edson Cirilo se encontrava sozinho tateando forças que não tinha em busca de ajuda. Um motorista chamado Assis, que trabalhava para o comerciante santa-luziense Joanísio da Mercearia, foi a primeira pessoa a parar e socorrer o motorista acidentado, deparando-se então com a terrível notícia que dali a poucos minutos inevitavelmente se espalharia pelo boca-a-boca e chocaria a todos nas cidades do vale do Sabugi e circunvizinhanças.

Padre Jerônimo Lawen. Arquivo: Paróquia de Santa Luzia

Em Santa Luzia, os fiéis que já estranhavam a demora do padre, o qual geralmente se destacava pela pontualidade europeia, receberam atônitos a triste notícia do acidente. A partir dali o clima de festa acabava completamente, dando lugar à comoção.

Quando os primeiros registros sobre do acidente chegaram a Várzea, a vibração contagiante de uma cidade em festa murchou automaticamente, e, como no poema de Drummond, a festa acabou, a noite esfriou e o povo sumiu. A cidade, que se preparava para a grande noite de ano no Clube Municipal, ficou em choque, com muitas pessoas se dirigindo ao local do acidente para se certificar do terrível acontecido com os próprios olhos, outras chorando amparadas pelos familiares e amigos, e os bancos da praça esvaziando-se pouco a pouco. Titi Macambira, cujo caminhão viera dos sítios do município lotado de gente animada para a festa de noite de ano, começava a recolher as pessoas para fazer o caminho de volta, e no clube municipal a festa que havia sido preparada era cancelada em meio à tristeza e frustração de todos que já se faziam presentes por ali.

Para a jovem Ceicinha de Rafael, cujo coração palpitava antes de empolgação e alegria, coube a sensação triste de uma noite que jamais aconteceu, restando a ela retirar a maquiagem e o vestido que cuidadosamente havia escolhido para a sua hora de estrela. E todos regressaram para suas casas, comovidos e abalados para aguardar a provavelmente mais triste passagem de ano da história varzeense. Restava aos habitantes da cidade rezar pela alma de um padre que tanto amor havia dedicado à comunidade católica da igreja de São Francisco e esperar um ano vindouro de notícias melhores do que as trágicas e enternecidas notas acerca do acidente que a rádio Espinharas de Patos divulgaria na manhã de 1º de janeiro de 1975.


Acordes de sanfona, retretas no coreto e serestas de fim de século

 

Na virada dos anos 70 para os anos 80, eram os sanfoneiros patoenses Evandro e Manoel Valadares que davam ritmo dançante à noite de ano na antiga quadra que se localizava em frente às tradicionais bodegas da rua Antônio Urgolino. Essas festas de ano novo varavam a madrugada e por vezes amanheciam o dia saudando a manhã do ano que acabava se se iniciar.

Com a construção do coreto municipal, que substituiria a antiga da Antônio Urgolino, as noites de ano tornaram-se ainda mais atraentes e robustas, aglutinando gente de todas as comunidades e municípios vizinhos, animados pelas retretas da banda filarmônica municipal ou atrações de música ao vivo contratadas pela prefeitura. Várzea era, então referência nas festas de passagem de ano e o coreto municipal se fazia conhecer como o local ideal das festividades de noite de ano.

Com o advento do João Pedro, porém, que principalmente a partir dos anos 90, passou a obter destaque de principal festa da cidade, as noites de ano passaram a figurar em segundo lugar na preferência dos varzeenses quanto às festas de rua da cidade, e pouco a pouco o público que antes lotava a quadra e o coreto, começou a minguar. E então as noites de ano passaram a adotar um aspecto mais familiar e local, migrando depois para a praça Joaquim Marinho, onde ganhou uma roupagem mais moderna, com contagem regressiva na passagem de ano e show de fogos de artifício.

Muitas atrações musicais da terra comandaram os festejos de noite ano entre os anos 90 e 2000, como Carlinhos, Bibi de Garra, Junior de Vale e Maguila, o mago dos teclados, que tocou na inesquecível passagem de ano de 2000, um ano permeado pela mística da cultura popular. Maguila, que há muitos anos não se apresentava em sua cidade natal, naquela noite animou um público privilegiado que entrava para a história ao presenciar a entrada triunfal do último ano século XX e do segundo milênio. Naquela noite, a seresta rememorou sons e tempos antigos, e as velhas gerações que antes abrilhantavam as festas no clube ou no coreto municipal se sentiram vivamente representadas.

Atualmente as noites de ano, por mais que sigam sem o brilho apaixonado das antigas festas, continuam acontecendo na cidade e juntando na rua os varzeenses que desejam abraçar seus conterrâneos após a passagem de ano. Seja como for, o brilho nos olhares não se apaga, tampouco o calor dos abraços sinceros, e por mais que as noites de ano antigas tenham se tornado memória das gerações passadas, a rua, a igreja e a praça permanecem convidativas e hospitaleiras virando os réveillons com radiosos votos de feliz ano novo.